Sociedades pós-seculares e religiões: perguntas a Habermas
“À pergunta se a religião como fenômeno central do espírito permanecerá ou se desvanecerá sob o constante progredir do esclarecimento, ele não dá uma resposta unívoca: oscila entre um sim e um não”, afirma Vittorio Possenti, filósofo italiano, em artigo publicado no jornal italiano Avvenire, 20/07/2008. Segundo Possenti, “ultimamente Habermas pareceu aproximar-se da posição de Hegel, segundo a qual a religião é essencialmente um fenômeno do passado, do qual a filosofia nada mais tem a aprender, a não ser o ato de determinar precisamente o que é racional ou irracional na fé”. E conclui, perguntando: ” Existe um duplo Habermas?”
Eis o artigo.
Entramos numa sociedade pós-secular? Há alguns anos aplica-se o prefixo “pós” também à secularização: não só pós-industrial, pós-moderno, mas também pós-secular. Esclarecemos o termo, para evitar equívocos. Em sua melhor determinação ele significa, não que está se reduzindo a laicidade das instituições civis e da política, mas que declina a idéia que a religião seja mantida a uma rigorosa distância da esfera pública. Neste sentido, pode acontecer que na sociedade pós-secular se incremente a secularização de algumas faixas de cidadãos e, simultaneamente, a presença pública da religião. Na intervenção A terceira via entre laicismo e radicalismo religioso (em “Repubblica” do dia 19, antecipando a revista “Reset”), Habermas acende a questão, recorrendo ao termo pós-secular para designar a nova situação em curso.
Não se trata somente de dar-se conta de uma retomada de presença pública das religiões mundiais nos respectivos contextos geoculturais, mas de entrelaçamentos, enquanto concernem à Europa importantes lições sobre a contribuição do partido religioso e do laico à vida comum (a situação americana é diversa, enquanto a presença pública do fato religioso pertence à sua experiência constitutiva). Habermas deixa de lado os dois extremos do laicismo e do fundamentalismo religioso, para buscar uma terceira via. Ao perfazer este trajeto, ele considerou, nos últimos anos, com crescente atenção as reservas de sentido que o discurso religioso contém, como também os maiores riscos do discurso secularizado e cientificista, sugerindo um reconhecimento recíproco entre laicos e religiosos, e um processo de aprendizagem complementar: aquele em que as duas partes não se excluem a priori, mas retêm que cada uma teria algo a aprender da outra. A aprendizagem complementar é um ganho, não uma perda ou diminuição para a parte que aprende.
A colocação é clara: buscar a frutuosa convivência – que é mais do que mera coabitação – entre cidadãos de diferentes culturas, crenças e pertencimentos, mantendo-se no âmbito de um quadro ético, político e jurídico suficientemente homogêneo e em geral estabelecido por valores constitucionais fundantes. Os riscos de fanatismo e de violência, ínsitos no fundamentalismo religioso, são evidentes e desde ao menos uma década têm sido justamente sublinhados por muitos, entre os quais Habermas. Hoje ele se volta ao laicismo, sublinhando que a exclusão recíproca, tanto cognitiva quanto motivacional da visão religiosa corre o risco de privar “a sociedade de recursos úteis à fundamentação do sentido e das identidades”. E acrescenta: “Pergunto-me se uma hipotética mentalidade laicista da grande massa dos cidadãos não acabaria por ser tão pouco desejável quanto uma deriva fundamentalista dos cidadãos crentes”. Estas e outras expressões concernentes ao diálogo, ao mútuo reconhecimento, à busca de bases comuns não podem não suscitar o consenso de tantos que têm a peito a obtenção de uma república aceitável e inclusiva.
O filósofo alemão não se limita a tal nível, mas faz alusão a alguns temas ainda mais decisivos: a relação entre fé e ciência e a permanência da religião. Sobre o primeiro, sua opinião é que o partido laicista-fundamentalista tenha propensão no sentido de desacreditar cientificamente os conteúdos de fé e a considerá-los sobrevivências pré-modernas destinadas a desaparecer. Assim, torna muito difícil o diálogo: como dialogar, se uma das duas partes considera a outra portadora de falsidade e, além disso, destinada à insignificância e ao desaparecimento? Estamos diante da afirmação descontrolada de um cientificismo e de um naturalismo empregados como martelo de toda fé: “Hoje o laicismo se apóia freqüentemente num naturalismo ‘hard’, isto é, fundado em assuntos científicos”. Nada de mais verdadeiro: hoje a tese cientificista ou – caso se queria – neopositivista – é bem mais difusa de quanto parece à primeira vista.
Como reagir? Nos escritos de Habermas existe a sensibilidade para advertir o perigo do cientificismo, e não a possibilidade de enfrentá-lo. Também ele pertence, de fato, àquela vasta fileira denotada pela vertical pós-metafísica que se condensa na asserção clara e nítida: somente a ciência conhece, todo o resto pode ser interessante sob vários títulos, mas não conduz à verdade. Uma afirmação que quase se tornou um slogan que substitui aquele agora não apresentável, mas repetido por décadas, segundo o qual a mais modernidade corresponde menos religião: um estribilho que representou um verdadeiro maná para sociologias e filosofias de segunda ordem. A este elemento se acrescenta, nos escritos habermasianos, uma oscilação periódica concernente ao papel próprio da religião na civilização, que pode fazer falar de Habermas como de um “alvo móvel”. À pergunta se a religião como fenômeno central do espírito permanecerá ou se desvanecerá sob o constante progredir do esclarecimento, ele não dá uma resposta unívoca: oscila entre um sim e um não. Aqui não se trata mais de negar um potencial de sentido às concepções religiosas do mundo, nem de solicitar aos crentes que motivem suas escolhas civis independentemente de suas convicções religiosas, como pretende a infeliz fórmula de proceder etsi Deus non daretur [como se Deus não existisse]. Trata-se do valor em si da religião. Ultimamente Habermas pareceu aproximar-se da posição de Hegel, segundo a qual a religião é essencialmente um fenômeno do passado, do qual a filosofia nada mais tem a aprender, a não ser o ato de determinar precisamente o que é racional ou irracional na fé. Existe um duplo Habermas?
Para ler mais:
A religião e o espaço público – Uma réplica ao filósofo Jürgen Habermas
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