O sagrado está dentro do homem. Entrevista com Luc Ferry

O sagrado está dentro do homem. Entrevista com Luc Ferry

Depois da “morte de Deus”, anunciada há um século pelo alemão Friedrich Nietzsche, que lugar resta em nossa vida para o absoluto? Em “Depois da Religião”, em um diálogo rico e não ortodoxo, o filósofo francês Luc Ferry e seu colega jornalista Marcel Gauchet encontram um novo lugar para o absoluto no mundo: o coração humano. Se por um lado o mundo se desencanta, se as religiões se tornam mais rígidas, dogmáticas e belicistas, um novo tipo de encanto e de elevação se afirma com o século XXI. Agora é o próprio homem quem carrega dentro de si o sagrado e isso talvez o leve a aumentar o cuidado de si e o respeito pelos outros. Não basta o mundo se guiar por uma ética laica, diz Ferry, ele próprio um agnóstico, como Gauchet. É preciso que a idéia do absoluto persista e ela se guarda agora não no além, não em um ideal longínquo, mas nas próprias limitações do homem.

A reportagem e a entrevista é de José Castello e publicada pelo jornal Valor, 22-08-2008.
Um dos maiores intelectuais franceses da atualidade, ex-ministro da Educação do governo de Jacques Chirac (de 2002 a 2004), professor da Sorbonne, é autor também de “O Homem-Deus ou o Sentido da Vida” e “Aprender a Viver”, entre outros livros.
Luc Ferry com Marcel Gauchet é autor do livro “Depois da Religião – O Que Será do Homem depois Que a Religião Deixar de Ditar a Lei?”
Eis a entrevista.
O fundamentalismo islâmico, a expansão do dogmatismo cristão e os conflitos e guerras religiosas provam que as religiões estão vivas e muito fortes. Por que isso ocorre? As religiões mudaram e se adaptaram ou, ao contrário, seu poder está justamente na insistência nos valores da tradição?
Você conhece a etimologia: “religio”, “religere”, significa “tornar a ligar”, “reunir”. São as religiões que, desde os tempos remotos, servem para unir as sociedades. Logo, não é por acaso que elas se tornaram fatores de guerras e de conflitos, isso apesar dos valores em geral pacifistas que pregam. As religiões têm sempre interesse em defender os valores tradicionais. Na Europa, contudo, há mais de um século todo o movimento democrático se expressa numa revolta cada vez maior dos indivíduos contra os valores e as autoridades tradicionais. Eis porque, entre nós, europeus, a religião está em decadência. Quando eu era rapaz, 85% dos franceses eram católicos. Hoje os católicos franceses não chegam a 50% da população.
O homem contemporâneo parece ter perdido suas referências. O Estado perdeu seu poder, o pai se enfraqueceu e a verdade perdeu parte de seu prestígio. O homem passa a se dedicar à fé – confluência do visível e do invisível. A religião não se tornou, em muitos casos, uma obsessão?
É verdade que o século XX se dedicou, ao menos no Ocidente, à desconstrução dos valores tradicionais. As vanguardas estéticas e políticas, opondo a “vida boêmia” à “vida burguesa”, desconstruíram tudo: a tonalidade na música, a figuração na pintura, a cronologia e a psicologia dos personagens no romance e no teatro, mas também os valores religiosos e morais da tradição. Mas é preciso compreender o que, no meu entender, é a chave do século XX: paradoxalmente, não são as vanguardas subversivas ou revolucionárias que conduziram as mudanças, mas o capitalismo globalizado. Foi ele que, no fim das contas, liquidificou e liquidou os valores tradicionais, ao exigir que tudo desemboque na lógica de mercado.
É por causa do capitalismo globalizado que não existem mais ideais transcendentais e tudo se torna mercadoria. Pois, no mundo de hoje, nós consumimos de tudo, não simplesmente computadores e automóveis, mas também consumimos cultura, religião, escola, política, etc. Porém, e aqui eu não sigo o caminho proposto em sua pergunta, apesar de todos esses aspectos destruidores, o capitalismo inventou um valor novo e positivo: o casamento por amor e a família moderna, fundada sobre a livre escolha e a afinidade eletiva. E essa invenção vai conduzir a uma boa coisa: a sacralização da pessoa humana. Como?
Eis o que nos ensinam os melhores historiadores: na Idade Média, não se casava jamais por amor, mas para transmitir um nome, um patrimônio, uma herança. Não se casava ativamente, mas passivamente, pelos pais ou pela cidade. Ao inventar os assalariados e o mercado de trabalho, o capitalismo arranca os indivíduos das comunidades rurais e religiosas de origem. E esses indivíduos passam a ter um salário, logo uma autonomia financeira e material. Assim, em vez de se deixar casar passivamente, eles passam a se casar por escolha, por afinidade, por amor. Como mostro no meu livro, essa invenção moderna altera toda a nossa relação com a infância e conduz à sacralização do humano. Sacralização que provoca repercussões consideráveis, e ao meu ver positivas, também sobre a vida política.
A espiritualidade ainda tem sentido no mundo laico de hoje?
A questão crucial é a diferença entre moral e espiritualidade. Durante muito tempo, acreditei, como a maior parte de meus colegas filósofos hoje, que era possível se contentar com a moral. Eu era ateu ou, para dizer melhor, era agnóstico, e continuo a ser, mas acreditava que as morais laicas bastavam para nortear a conduta humana, o que é falso. E eis por quê. Na essência, as morais modernas giram em torno da questão do respeito pelo outro. Para simplificar, podemos dizer que a carta básica de nossos princípios éticos é a Declaração dos Direitos do Homem. A idéia de que a minha liberdade deve terminar onde começa a liberdade do outro. Terminei por tomar consciência de uma coisa que me preocupava havia muito tempo: essa visão moral do mundo, qualquer que seja sua grandeza ou utilidade no plano social e político, não leva em conta uma série de questões existenciais essenciais. Se você dispusesse de uma bengala mágica que permitisse que os seres humanos se conduzissem de maneira moral uns diante dos outros, não haveria mais estupros, nem roubos, nem genocídios, nem ainda massacres. Contudo, isso não regularia uma série de questões: como viver o luto de um ser amado, como educar um filho, para que serve o envelhecimento, etc.
Essas questões não foram desprezadas pelos filósofos durante muitas décadas, em especial desde a morte de Martin Heidegger?
A moral laica não é suficiente para refletir sobre a questão do luto, das idades da vida, da banalidade da existência cotidiana, ou do tédio, simplesmente porque essas questões surgem de uma outra esfera: a da espiritualidade, ou da sabedoria, no sentido próprio. Daí a problemática que trabalhamos com André Comte-Sponville no livro “A Sabedoria dos Modernos” [Martins Fontes, 1999]: que sabedoria convém aos indivíduos desencantados ou desiludidos que povoam nossas sociedades laicas?
O sr. afirma que, hoje, o divino e o humano se misturam. Há uma ruptura na fronteira que separa a fé do real. Vivemos hoje uma nova sacralização do mundo?
O verdadeiro critério do sagrado se mostra na hipótese da renúncia à vida, do sacrifício supremo de si. Os valores sagrados são aqueles pelos quais podemos nos sacrificar. Quando observamos os motivos tradicionais do sacrifício, aqueles pelos quais os seres humanos aceitaram arriscar a vida, nos damos conta de que eles desapareceram da Europa. Deus, a Pátria, a Revolução. Esses motivos estão de tal forma corroídos que quase ninguém mais, na Europa
de hoje, morre por eles. Eles ainda estavam muito presentes nos anos de antes da guerra e mesmo ainda um pouco depois disso. Minha idéia, contudo, é a de que o sagrado não desapareceu completamente. Ele desertou das entidades tradicionais do sacrifício para se encarnar na humanidade. O século XX é o século do aparecimento de uma nova figura do sagrado, aquela que eu chamo de o sagrado com um rosto humano. A transcendência vai se encarnar na imanência do mundo vivido, para retomar a formulação de Husserl. Nós não descobrimos mais a verdade, ou o amor, como alguma coisa recebida do exterior. Por exemplo, quando nos apaixonamos, entendemos que isso procede do próprio coração humano. Eis a figura da transcendência na imanência: alguma coisa que nós vemos nascer em nós como sui generis e, apesar disso, nos ultrapassa.
O sr. diz que a moral laica não responde às necessidades fundamentais do ser humano. Isso significa que existe, hoje, um novo lugar para o sagrado?
Sim, é exatamente isso. O sagrado não desapareceu: mudou de lugar. É claro, hoje, sobretudo na Europa e também em boa parte do Ocidente, quase ninguém mais desejaria morrer por abstrações religiosas ou patrióticas. Contudo, em vez de isso me desolar, como acontece com muitas pessoas, vejo aí uma excelente novidade. Como eu lhe dizia, na Idade Média ninguém se casava por amor. O objetivo do casamento não era só a transmissão do nome, do patrimônio, mas também a necessidade econômica: tratava-se de fabricar crianças para continuar a exploração agrícola. O aparecimento do salário desordenou essa situação. O mercado de trabalho que aparece com o capitalismo obriga os indivíduos a trabalhar nas cidades. Com isso, os indivíduos se libertam das formas tradicionais de contrato social, sejam religiosas ou agrícolas. E ao mesmo tempo adquirem autonomia financeira. O que os leva, também, a desejar não mais casar à força, mas por escolha e, se possível, por amor. E esse amor vai se transferir, por intermédio das crianças, para as gerações futuras. Na Idade Média a morte de uma criança era, freqüentemente, menos importante do que a morte de um cavalo. Hoje, é a pior coisa que pode acontecer a uma família. E esse amor, por extensão, é a origem do desenvolvimento da ação humanitária, cuja história é rigorosamente paralela à da família moderna, fundada sobre o sentimento, não mais sobre a obrigação. Bem entendido, toda essa evolução levou séculos e está apenas se completando no Ocidente.
“Depois da Religião” é um longo diálogo com Gauchet. A religião contemporânea, marcada pelo fundamentalismo e pelo dogmatismo, exclui o diálogo? Ela prefere o monólogo?
Em um momento ou outro, qualquer religião repousa sobre argumentos de autoridade que parecem “dogmáticos” aos que não crêem. A partir de certo ponto, a razão e a argumentação cedem lugar à fé e isso não se discute. Com Gauchet, foi fácil: nenhum de nós possui uma fé, ainda que tenhamos em comum uma característica, bastante rara entre os que não crêem: respeitar profundamente o sentimento religioso.
O sr. afirma que, hoje, não se dá mais importância à sabedoria. Não será porque, em um mundo de filosofias, ciências e saberes dogmáticos, ela ficou nas mãos da religião?
Não digo exatamente isso. Digo apenas que a filosofia contemporânea, universitária, deserdou o tema da sabedoria. Habermas, Rawls ou Foucault não falam dela. Nem Deleuze ou Sartre. Esse é, no entanto, aos meus olhos, o tema que sustenta a filosofia. A única questão verdadeiramente interessante é a da boa vida e para falar de justiça, de argumentação ou de desconstrução dos asilos e prisões não temos mais necessidade da filosofia. A sociologia parece suficiente. As religiões nos convidam a crer em uma vida depois da morte, enquanto as grandes filosofias retomam todas, à sua maneira, a questão posta por Homero e pela filosofia grega: como encontrar uma sabedoria para os mortais, uma boa vida para os que vão morrer? Você se lembra da “Odisséia” e da famosa passagem em que Ulisses se encontra prisioneiro de Calipso. A ninfa é sublime. Loucamente apaixonada por Ulisses, ela não se cansa de fazer amor com ele. Disposta a tudo para conservá-lo, ela lhe oferece a imortalidade. No entanto, Ulisses a deixa, retorna para Ítaca, sua terra natal, e reencontra a família.
Prova de que uma vida de mortal consegue ser talvez superior a uma vida de imortal fracassada. Aceitação da aventura e da morte, sabedoria não religiosa. A filosofia começa na Grécia com essa idéia genial de que sábio é aquele que consegue viver no presente, sem ser constantemente submetido a estes dois males que são o passado e o futuro. Por quê? Porque todas as angústias vêm disso. Quando o passado foi feliz, permanecemos na nostalgia. Quando foi penoso, sentimos arrependimentos e culpas. Então, nos refugiamos no futuro, tentando nos convencer de que ele será melhor quando mudarmos de carro, de sapato, de penteado, de mulher, de marido, de casa…
E, é claro, isso é uma grande ilusão. O sábio é aquele que consegue vencer o medo ou, como disse Marco Aurélio, aquele que consegue se lastimar um pouco menos, esperar um pouco menos e amar um pouco mais. Encontramos essa idéia em Spinoza, mas também em Nietzsche, na noção de “amor ao destino”, amor ao que está lá. O que mostra bem que os grandes filósofos, mesmo os menos religiosos, se interessam pela questão da sabedoria.
O que é, hoje, o absoluto? Ele pertence somente aos padres, aos rabinos e aos imames islâmicos?
Não, o absoluto é uma coisa importante demais para ser entregue aos padres. O absoluto se encarnou na humanidade e eu diria que todos somos responsáveis por ele. Nesse sentido, acredito que nosso século XXI começa muito bem e não é tão ruim quanto se diz freqüentemente, sem pensar, simplesmente porque o pessimismo empresta sempre um ar mais inteligente que o otimismo.

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2 Comments

  1. LARP

    This surely makes perfect sense to anyone

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