O Jesus histórico é um homem genial com duas faces’
Ele é um dos maiores especialistas do mundo em Novo Testamento. Em um campo dominado desde sempre por clérigos, o professor da Universidade Complutense de Madri, Antonio Piñero, rodeado de um buquê de autênticos especialistas laicos, se atreve a imiscuir-se na tapada clerical. Com desenvoltura e desfaçatez. Sem pedir licença. Sem preconceitos, sem obediências devidas, sem estômagos agradecidos.
O livro Todos los Evangelios [Todos os Evangelhos] (Madri: Edaf, 2009) é uma tradução integral das línguas originais de todos os textos evangélicos conhecidos. Sem papas na língua sustenta que “o Jesus histórico é um homem genial com duas faces” e que os teólogos católicos vivem numa “jaula de ouro”.
Antonio Piñero é autor também de O outro Jesus segundo os Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Paulus; Mercuryo, 2002.
Segue a entrevista que Antonio Piñero concedeu a Jesús Bastante e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 14-04-2009. A tradução é do Cepat.
É possível abarcar o Evangelho?
Não, porque mesmo que as pessoas digam que só conhecem quatro Evangelhos, o certo é que há 76. Não se pode abarcá-los porque vários deles foram perdidos. Penetrar profundamente neles é tarefa para uma vida inteira.
Estás há muitos anos nessa tarefa…
Muitos anos, e ainda estou começando. Falo isso a sério.
Esse estudo ajuda a descobrir uma figura de Jesus diferente daquela que estamos acostumados a ver?
Certamente, há três figuras de Jesus, no mínimo, quase quatro. Primeira, a figura corrente da Igreja, que não creio que seja necessário explicar. Segunda, a figura dos Evangelhos Apócrifos primitivos não paulinos, e que são muito humanos, que apresentam um Jesus muito humano e muito judeu, muito apegado à terra: terceira, um Jesus dos Evangelhos Apócrifos que foram tolerados pela Igreja, e outros domesticados, que apresentam um super-herói, sobretudo quando é uma criança – e que é um assassino, ou um mago, um taumaturgo muito feroz, com milagres de exibição tão espetaculares… Esta figura pretende dizer, simplesmente, que Jesus é tão poderoso como qualquer dos heróis pagãos. Esse é um Jesus horrível, um velhaco, muito metido, mata seus amigos mesmo que depois os ressuscite… E o quarto e último Jesus é o Jesus gnóstico, misterioso, o indivíduo que vem do céu, o Ressuscitado… O Vivo, que tem doutrinas que não consegues entender sem antes estudar Platão. O fundo de sua maneira de ver a divindade, a criação do mundo e a figura do Redentor estão em um fundo absolutamente platônico.
E qual é o Jesus no qual o Antonio Piñero acredita? E qual é aquele que não existiu?
A Igreja tem razão ao dizer que se queremos aproximar-nos do Jesus que existiu devemos ir aos Evangelhos, digamos, aceitos. Mas por uma razão: porque são os mais antigos, e porque todos – menos o de João –, sobretudo o de Marcos, têm uma grande vantagem: são pessoas honestas, porque narram fatos e ditos de Jesus, inclusive quando vão contra as suas ideias. Ficamos com esse material, que se impôs pela força da História, e isso é fantástico.
Mas se tratas de buscar a figura de Jesus, para que onde tens que ir?
Para esses Evangelhos. Primeiro o de Marcos, e depois o de Mateus e Lucas, e uma ou outra vez, o Evangelho de João, com muito cuidado.
Mas João é o único que conviveu com Jesus…
É isso… o que diz a Tradição a partir do século II. Mas essa Tradição, infelizmente, não é verdadeira. O Evangelho de João, segundo diz o sentir médio de todos os pesquisadores, inclusive os católicos, não foi escrito por nenhum “colega” de Jesus. É feito por um indivíduo que tem atrás de si uma escola, aproximadamente 70 anos depois de Jesus.
Já é uma Igreja de Paulo, então…
Já é uma Igreja fundamentalmente paulina, mas de um ramo místico. Vai por conta própria. E o Evangelho se caracteriza por um Jesus que, em vez de falar como o Jesus da História, o que diz é o que diria o evangelista. Ou seja, a Teologia.
E depois da tua pesquisa, que conclusões tiras? Jesus foi mais humano que divino, mais humanitário que sanguinário, o que é?
Estou falando do Jesus histórico, que é um homem genial, com duas faces. Por um lado, é um Jesus humanitário, que está com os pobres e os desfavorecidos, que prega a lei do amor sem dúvida alguma, que procura formar uma família espiritual… mas, por outro lado, esse mesmo Jesus é muito duro. Diz claramente que aquele indivíduo que não ouvir a sua mensagem se condena. Tem uma faceta melhor que João Batista, em insistir nesse Deus que ama, que chama o homem, mas por outro lado tem a faceta de que, como não lhe fazes caso, te condena às trevas, ao inferno. E ali será o choro eterno e o ranger de dentes. Tem uma faceta de um Jesus muito humano, mas também a faceta de um Jesus duríssimo… que as pessoas muitas vezes ignoram, porque não convém.
Mas aí não há um componente de fé estrito, religioso, mas antes admiração…
Exato, e então começas a ver Jesus como um ser humano e histórico.
A morte e a Ressurreição são fatos históricos?
A Morte, sem dúvida. A Ressurreição… eu sempre digo que como historiador não me atrevo a afirmá-la nem a negá-la. E por uma razão: a história só trata de fatos comprováveis e repetíveis, e uma ressurreição não é repetível nem comprovável. Já me dirás como podes fazê-lo. De fato, os Evangelhos não a narram, é uma postura muito inteligente.
Não narram a Ressurreição, mas narram o momento em que Jesus está de novo entre os vivos…
O que narram são as aparições, a sepultura vazia, como um anjo, ou dois, se apresentam às mulheres, e sua reação. Mas a Ressurreição como tal, me parece genial não narrá-la. É uma boa novela, sim senhor. Tu, que és novelista, sabes como Homero narra a beleza de Helena, aquela pela qual se deu a guerra de Tróia? Dois velhos se colocam no adarve de uma muralha, olham para baixo, veem Helena, e um diz para o outro: Por essa mulher valeu a pena ter feito a Guerra… E ali acaba a descrição. É fantástico. O leitor fica pensando em como é essa mulher. Com a Ressurreição acontece a mesma coisa.
Vivemos em uma Igreja onde há pouca margem para essa imaginação?
Sim e não. Para a pessoa comum está totalmente constrangida. Tenha em conta que já nos começos da Igreja, nas “epístolas pastorais”, dos sucessores de Paulo, se diz claramente que é preciso guardar um depósito de ideias, de fé. As ideias sobre Jesus já se transformaram em dogmas. Mas os teólogos que têm um campo, mas no final das contas o teólogo está dentro de uma jaula dourada, de um palácio de cristais. Por muito que se mova, não pode sair desse palácio.
Estamos voltando a Platão…
Um pouco. Então, eu penso que uma Igreja bem constituída, com ideias que, como digo, se transformaram em dogmas, não tem espaço. É lógico: uma instituição que não seja assim, como pode durar tanto tempo? Um partido político funciona do mesmo jeito: se dissentes, fora. É isso que aconteceu no Cristianismo.
Há alguma passagem que te surpreendeu nas tuas pesquisas sobre os Evangelhos?
Do ponto de vista literário, um dos parágrafos que mais gosto é o do Protoevangelho de São Tiago. O título é do século XVI, mas o texto provavelmente seja do ano 150. Narra a infância de Maria, como se casa com São José, e narra o nascimento de Jesus, e é muito importante, porque a partir daí segue linhas d
e Tradição. É maravilhoso: simplesmente, o mundo se detém. José deixa a Virgem porque necessita de uma parteira, e vai a procura de uma, e não a encontra, e de repente vê que o mundo se detém. O sol para, o rio pelo qual ia cruzar se detém, uma ovelha que ia pular para no ar, um pastor que ia comer com uma colher fica com a mão parada… o mundo se detém por alguns instantes. É uma descrição fantástica, apaixonante. Pertence a um Evangelho Apócrifo.
Essas teorias de Jesus e seus irmãos, já que falamos de São Tiago, se colocam nestes textos?
Claro que se colocam, e com muita clareza, ainda que talvez com maior clareza ainda nos Atos Apócrifos. Desde já, há várias revelações a São Tiago. O capítulo 6 do Evangelho de Marcos e o 10 de Mateus, eu estou convencido de que são irmãos carnais de Jesus. Tiago e João, mas no total são no mínimo seis ou sete, além de Jesus. Por quê? Meu argumento, à parte do uso do vocábulo irmão, é que isso não importou à Igreja primitiva; pelo contrário, o defendeu até o século IV. O que importava à Igreja primitiva? Postular que Jesus, só Jesus, havia tido um nascimento procedente de Deus, a concepção virginal… Mas, o que Maria fez depois? Isso não interessava a ninguém. Começa a preocupar em torno do ano 380, final do século IV, plenamente em Roma.
Passaríamos muito mais tempo falando sobre esses temas… Te proponho que possamos ter outra conversa.
Quando quiseres. Este é um mundo apaixonante, porque é a raiz da nossa cultura, e nem tudo é como parece. Ou quase nada é como parece ser. Há um ponto detetivesco em se enfiar nas origens do Evangelho. Todos os Evangelhos agora podem ser comodamente encontrados neste livro.
Nós pensamos que vale a pena, e por isso recomendamos que comprem o livro… Uma compilação de textos que não vão deixar ninguém indiferente.
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