As razões de Bento XVI sobre o ateísmo e o niilismo
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As razões de Bento XVI sobre o ateísmo e o niilismo |
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“Pode haver […] um humanismo ateu que não seja niilista do ponto de vista ético? Pode haver um humanismo sem transcendência que reconheça um valor maior do indivíduo, um primado da ética com base na qual o indivíduo supere a si mesmo e a sua vontade de poder?”. Esses são os questionamento do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 14-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto. No dia 12, Adriano Sofri disse que queria tentar descrever “o desconcerto” com que leu as palavras de Bento XVI do domingo, 09, no Ângelus, particularmente “o pulo” dado ao ver “a natureza e quase a distração com a qual o Papa aproximou nazismo e niilismo”. Sofri se saiu muito bem na sua tentativa, porque qualquer um que tenha lido o seu artigo ficou com a convicção de que o Papa errou ao equiparar nazismo, niilismo contemporâneo e humanismo ateu. É verdadeiramente assim? Trata-se de uma conclusão apressada, infundada, talvez até nociva para a convivência social? A questão pode ser enfrentada do ponto de vista historiográfico ou do ponto de vista filosófico-existencial. Deixando a Bento XVI a responsabilidade historiográfica da equiparação entre nazismo e niilismo contemporâneo, eu enfrentarei a equiparação entre humanismo ateu e niilismo, especificando primeiramente o que entendo por niilismo. Defino como niilismo a negação de um fundamento racional e eterno da natureza e da história, da qual se segue a negação de um ponto firme ao qual o indivíduo deve submeter o seu agir e, antes ainda, o seu pensar. Nessa perspectiva, apresenta-se o núcleo do problema: o humanismo ateu (que, enquanto ateísmo, nega a existência de um fundamento racional e eterno do ser comumente chamado Deus) é necessariamente niilista, de tal forma que negue todo horizonte de valores aos quais o homem deve submeter o seu arbítrio e submeter a sua vontade? Para Bento XVI, a resposta é sim. Para Adriano Sofri, a resposta é não. Para Bento XVI, os campos de concentração nazistas (que, a meu ver, sempre devem estar associados aos gulag comunistas, expressões de uma ideologia não inferior no que se refere à produção de estupidez, ódio e morte) foram a consequência extrema mas lógica “do inferno que se abre na terra quando o homem se esquece de Deus e se substitui a ele”. Para o Papa, o humanismo ateu, segundo o qual “homo homini Deus” (para retomar uma máxima cara a Spinoza), está inevitavelmente destinado a produzir arbítrio e violência, pelo simples motivo de que o homem é corrupto e instável, e para ele vale neste caso a máxima clássica, desta vez cara a Thomas Hobbes, segundo a qual “homo homini lupus”. A antropologia agostiniana, baseada em uma visão do homem que tem, no pecado original, o principal ponto de apoio, surge de modo claro em Bento XVI e explica a sua equiparação entre nazismo e niilismo contemporâneo (chamado, outras vezes, de individualismo ou relativismo). Agora a questão é: pode haver, como defende Sofri, um humanismo ateu que não seja niilista do ponto de vista ético? Pode haver um humanismo sem transcendência que reconheça um valor maior do indivíduo, um primado da ética com base na qual o indivíduo supere a si mesmo e a sua vontade de poder (que muitas vezes se expressa de modo caseiro na forma de adultérios, mentiras, malícias, narcisismos de várias espécies)? Se a resposta é sim, Sofri perfeitamente tem razão ao contestar a equiparação papal. Trata-se de uma questão enorme, que ocupa grande parte das pesquisas da filosofia moral de todos os tempos e que não é certamente resolvível nas poucas frases de um artigo. Aqui, limito-me a destacar o lugar em que, a meu ver, a partida é jogada, isto é, na individuação com base apenas na razão de um ponto firme sobre o qual construímos o primado da ética. É possível para a consciência contemporânea localizar esse ponto firme? Ou seja: é possível construir uma ética laica? Ou ainda: é possível um humanismo ateu não niilista? Na tentativa de responder, coloco-me em uma perspectiva totalmente laica, como um homem pensante que olha a vida deixando de lado a tradição religiosa na qual foi educado, olha-a de modo desencantado, o máximo possível isento de paixões e ideologias, como um imenso experimento cujo resultado final ignora. O que vê quem olha a vida assim? Respondo a partir do mesmo número do La Repubblica em que apareceu o artigo de Sofri. À parte dos classificados sobre quem usa o seu poder e o seu dinheiro para comprar mulheres jovens e bonitas, e à parte das muitas mulheres jovens e bonitas que se vendem mais do que de bom grado a quem tem poder e dinheiro (leio até sobre uma página na Internet para ensinar as meninas a se tornar assistentes de palco), o mundo que surge do La Repubblica do dia 11 de agosto de 2009 é feito de mortes por acidentes de trânsito (“Cinco vítimas em Caserta”), de tragédias nas montanhas (“Ao cair durante busca por cogumelos, jovem de 15 anos morre”), de crianças que se vão no auge da infância (“Mistério sobre a morte de uma menina hospitalizada devido a uma crise de vômito”), de quem perde a vida por motivos fúteis (“Briga no bar, morto com uma faca”), de violência sexual (“Estupro em San Felice Circeo: massacrada e com lesões nos órgãos internos”). E isso limitando-me às notícias italianas de um único dia, que devem ser multiplicada talvez muitas vezes para se ter uma ideia das tragédias que os homens experimentam. As notícias não são questões acadêmicas, e por isso não existe o risco de que mintam. Se poderia objetar que a vida do homem não é só notícias trágicas. E é verdade, também existem as notícias “rosas”, e depois a política, cultura, exterior, espetáculos, esporte, economia. Mas talvez se apresenta aqui um ponto firme sobre o qual se pode construir estavelmente o primado da ética? Passaram-se mais de 20 anos desde que um grande laico como Norberto Bobbio atestou, mesmo que de forma duvidosa, a falência da ética laica, isto é, a incapacidade da razão apenas de responder à pergunta sobre o por que se deve fazer sempre o que é certo mesmo quando, para o indivíduo, seria mais conveniente fazer o contrário, quando em um ensaio de 1983, intitulado “Prós e contras uma ética laica”, concluía: “Parece portanto que toda tentativa de dar um fundamento racional aos princípios morais esteja destinado à falência”. Deixando, assim, a Bento XVI a responsabilidade historiográfica da equiparação entre nazismo e niilismo contemporâneo (associação, limito-me a dizer, que não me convence), permanece portanto mais verdadeira do que nunca, a meu ver, a sua crítica ao antropocentrismo mode Atenção: não estou defendendo que não haja ateus de comportamento eticamente cristalino. Sei muito bem que existem. Eu mesmo conheço muitos. Estou defendendo, pelo contrário, que pessoas assim manifestam, com o seu absolutismo ético, um nível do ser que não está conforme à sua negação de um absolutismo em nível ontológico. E quanto à perspectiva específica do humanismo, eu considero que é possível defender um primado do homem dentro da natureza só a partir de uma perspectiva espiritual, isto é, só por parte de quem reconhece o espírito como dimensão do ser não redutível à matéria, porque é exatamente o espírito o que faz do homem algo diferente de todos os outros seres vivos. Eu considero que o humanismo ou é espiritual ou não é, independentemente de qual nome se dê a essa dimensão espiritual entre as múltiplas religiões e filosofias que pretendem representá-la. No final de seu artigo, Sofri recordava Edith Stein e o padre Kolbe, associados por ele a outros “testemunhos da humanidade” de fés diferentes e também sem fé. É justamente esse valor, a humanidade, o tesouro mais alto. No “De senectute”, Bobbio escrevia que não teve “as satisfações mais duradouras da vida pelos frutos do meu trabalho… Eu as obtive da minha vida de relações, dos mestres que me educaram, das pessoas que amei e me amaram”. São palavras que testemunham que o sentido da vida humana é o amor. E o amor, para ser protegido, requer uma adequada visão do mundo. Precisamente para proteger a verdade do amor, desmentida quase que regularmente pelas notícias e pela política, os homens sentiram e sentirão sempre a necessidade de falar de espírito, de uma dimensão interior que não pode ser comprada com as riquezas deste mundo e que nunca se vende às riquezas deste mundo. |
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