Bento XVI, o nazismo, o niilismo. A disputa se inflama
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Bento XVI, o nazismo, o niilismo. A disputa se inflama |
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As palavras de Bento XVI no Ângelus do dia 09 de agosto não cessam de gerar discussão. Emanuele Severino as contestou, Giovanni Reale as defendeu. No jornal La Repubblica, Adriano Sofri denunciou “o erro de Ratzinger” ao considerar impossível uma ética que não faça referência a Deus. No jornal Avvenire do dia 19 de agosto, o teólogo e bispo Bruno Forte argumentou, pelo contrário, que, sem uma ética da transcendência, “tudo é permitido” e cai toda capacidade de distinguir o bem do mal. A análise é de Sandro Magister, em seu blog Settimo Cielo, 20-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Mas o que precisamente disse Bento XVI? O Papa exortou recordando os santos Edith Stein e Maximiliano Kolbe, ambos martirizados no campo de concentração de Auschwitz. E assim prosseguiu: “Os campos de concentração nazistas, como todo campo de extermínio, podem ser considerados símbolos extremos do mal, do inferno que se abre sobre a terra quando o homem se esquece de Deus e se substitui a Ele, usurpando-lhe o direito de decidir o que é bem e o que é mal, de dar a vida e a morte. Infelizmente, porém, esse triste fenômeno não está restrito aos campos de concentração. Eles são também a ponta culminante de uma realidade ampla e difundida, muitas vezes de fronteiras fugidias. Os santos, que lembrei brevemente, nos fazem refletir sobre as profundas divergências que existem entre o humanismo ateu e o humanismo cristão. Uma antítese que atravessa toda a história, mas que, no final do segundo milênio, com o niilismo contemporâneo, chegou a um ponto crucial, como grandes literatos e pensadores perceberam, e como os acontecimentos demonstraram amplamente. De um lado, há filosofias e ideologias, mas também sempre mais modos de pensar e de agir, que exaltam a liberdade como único princípio do homem, como alternativa a Deus, e, de tal modo, transformam o homem em um deus, mas é um deus errado, que faz da arbitrariedade o seu próprio sistema de comportamento. De outro, temos justamente os santos, que, praticando o Evangelho da caridade, dão razão de sua esperança. Eles mostram o verdadeiro rosto de Deus, que é Amor, e, ao mesmo tempo, o rosto autêntico do homem, criado à imagem e semelhança divina”. Eis a seguir como o professor Pietro De Marco analisa em detalhe os argumentos anti-Ratzinger de Adriano Sofri: * * * Adriano Sofri não gosta da aproximação entre niilismo e nazismo realizada por Bento XVI no Ângelus de Castel Gandolfo do dia 09 de agosto passado. Ele escreveu no La Repubblica do dia 11 de agosto: “O fato de que ‘o niilismo contemporâneo’ constitui uma categoria única e orgânica me parece uma convicção aventada. O fato de que, grosso modo, essa categoria seja assimilada ao nazismo me parece um exagero, que, longe de indicar e revelar o mal niilista, reduz e ofusca o horror nazista”. Sofri também se irrita com o convite ao amor, para ensinar-nos que, pelo contrário, “só o amor” (mas não há nada do gênero no Ângelus do Papa) não poderia evitar nem punir Auschwitz. E disserta contra a contraposição entre humanismo cristão e humanismo ateus, a cujos cujos desenvolvimentos niilistas no passado (mas não concluído) final do milênio o Ângelus acena. Parece-me improvisada, na sua evidente incoerência, a memória de Jervis e Basaglia, assim como de Sebastiano Timpanaro, apresentados por Sofri como exemplos diante de Ratzinger: dois “humanismos ateus” que concordam pouco entre si e sobre cujas implicações ideológicas passadas discutiria de bom grado. É estranho que Sofri ignore que as moralidades estatuárias não são isentas por isso mesmo de niilismo. Muito simples, mas necessário, esclarecer contra Sofri que Ratzinger não “assimilou” o niilismo contemporâneo ao nazismo, nem parece estar perto do risco de resolver redutivamente um no outro. Porém, o nexo niilismo-nazismo, muitas vezes invocado, é pelo menos um momento obrigatório da análise do fenômeno nacional-socialista e vale, portanto, mais do que a execração mágica de Sofri: “Nazismo é um nome que merece ser manuseado com atenção, senão porque o simples fato de nomeá-lo deveria bastar para combatê-lo com todos os meios”. Não será Sofri que irá ensinar um intelectual alemão (nascido em 1927) como articular a própria opinião sobre o nacional-socialismo. O papa, nesse caso, ligou mais amplamente “o inferno que se abre sobre a terra quando o homem se esquece de Deus e se substitui a Ele” à afirmação do século XIX do humanismo ateu. A análise do teólogo jesuíta Henri De Lubac que divulgou a categoria de “humanismo ateu”, mesmo dividida entre horror e esperança, tinha diante de si as provas, nas almas e nas políticas, dos efeitos corruptíveis do ateísmo nietzscheano. Impressionante releitura é o seu “Drame de l’humanisme athée”, que foi publicado em primeira edição em 1944. Além disso, uma “assimilação” entre nazismo e niilismo, que Sofri verdadeiramente vê grosso modo, não podia existir no breve raciocínio do Papa, porque o “niilismo contemporâneo” do qual se fala no Ângelus é justamente o contemporâneo, o niilismo sobre o qual Jünger e Heidegger discutiram com gênio antecipador entre 1949 e 1955. Não é o niilismo clássico ao qual muitas análises dos fenômenos totalitários que explodiram entre as duas guerras se referem. A respeito do heroísmo niilista clássico, na sua versão homicida e suicida do ser-para-a-morte, no posterior desvio niilista das sociedades democráticas prevalecem modos de pensar e de agir “que exaltam a liberdade como princípio único do homem” e transformam o homem em “um deus errado, que faz da arbitrariedade o seu próprio sistema de comportamento”. São frases do Papa. Considero extremamente feliz esse “deus errado” em Ratzinger: o adjetivo modesto ilumina com o seu registro a mediocridade do drama niilista contemporâneo, ou seja, a arbitrariedade individual se conjuga com o apelo, aparentemente contraditório, de “sobriedade, higiene, ordem rigorosa” (Jünger) da forma social e ali se mascara. Não as liberdades para as decisões, as “liberdades para a morte”, evocadas por Karl L Nas 17 frases que, no Ângelus do dia 09 de agosto são dedicadas à meditação sobre as “fronteiras fugidias” (além e depois dos campos de concentração) da usurpação niilista de Deus, certamente não há muitas determinações. Mas uma leitura correta sua teria sido suficiente para compreender suas sombras, assim como suas fortes implicações últimas. Franco Volpi, do qual choramos a morte inesperada e prematura há poucas semanas, foi guia nesse campo, com as suas rigorosas traduções e esclarecimentos de grande parte da obra de Heidegger e de páginas decisivas de Ernst Jünger. No final de um límpido livro (citado em sua edição de 1996) dedicado ao niilismo, ele recordava que “só a atitude não ingênua [frente às muitas quedas niilistas do Ocidente] é a renúncia a uma sobredeterminação ideológica e moral dos nossos comportamentos. A nossa filosofia é a de Penélope que desfaz incessantemente a sua tela porque não sabe se Ulisses retornará. Ainda não sabemos, de fato, quando poderemos dizer sobre nós mesmos o que Nietzsche ousava pensar de si mesmo”, ou seja, de ter o niilismo quase “dentro de si, debaixo de si, fora de si”. Mas contra os próprios clássicos, que nos indicam (por meio de Heidegger principalmente, para Volpi) um destino, “o destino de um ‘de profundis’ do qual a humanidade não parece ainda ter se consolado”, levanta-se a voz, mesmo que em uma simples exortação dominical, do sucessor de Pedro. O fato de Sofri ter reagido quase sem ter lido é um bom sinal. Mas defender este ou aquele niilismo de ontem e de hoje é só uma pequena cabotagem. Todas as realidade que Bento XVI reuniu em poucas palavras são conexas entre si, entre horror e esperança, a “sperandarum substantia rerum”, a substância de coisas esperadas que a atormentada história do ser e o surgimento do “sentimento que seja totalmente privado de valor” nunca puderam apagar. Não é exortação, mas tema filosófico fundamental, que os santos evocados por Bento, aos quais foi concedido uma intacta existência no sentimento de que “tudo é graça”, deixem o niilismo “atrás de si, debaixo de si, fora de si” |
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