Heresia: uma chave para reler a história

Heresia: uma chave para reler a história
Um livro que vem de Enzo Mazzi, histórico animador da comunidade florentina do Isolotto, só pode ser visto com respeito e com a intenção do que se quer dizer. É claro que este último livro, “Il valore dell’eresia” [O valor da heresia] (Ed. Manifestolibri, 141 páginas), tem desde o título a intenção de reivindicar valor ao que, ao invés, é comumente desprestigiado e, pior ainda, combatido: a heresia, justamente, e mais concretamente os hereges.
A análise é de Raniero La Valle, publicada no jornal Il Manifesto, 02-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fato de a heresia ter, e historicamente sempre ter tido, um papel positivo para a própria conscientização ou esclarecimento da ortodoxia, é algo bem conhecido:Agostinho, no “De vera religione”, também reconhece a importância que os hereges tiveram ao incentivar a “busca pela verdade”. A heresia também não pode ter só uma conotação negativa se, na história da Igreja, houve heresias que, antes de serem qualificadas ou condenadas como tais, não eram outra coisa que um dos possíveis caminhos na definição do dogma: como ocorreu com a controvérsia ariana, que viu Igrejas inteiras e bispos e escolas teológicas inclinados a um lado ou a outro, mesmo depois do Concílio de Niceia, que decidiu qual era a verdadeira religião.
Ariane, depois Niceia: foram também muitas as dioceses italianas, começando porMilão, antes de Ambrósio. Também não deve ser esquecido que a evangelização dos Godos vindos do Leste, que estão nas raízes cristãs da Europa, ocorreu por obra de um grande bispo ariano, Ulfila, por isso grande parte do cristianismo europeu é de derivação ariana (“O Filho não co-eterno ao Pai”), o que explica muitas coisas da espiritualidade e também do secularismo do Ocidente.
Mas Enzo Mazzi quer estabelecer um estatuto privilegiado da heresia, que, longe de ser um fator de desestabilização e de desvio, seria uma espécie de arquétipo capaz de reger toda a realidade, até fazer dela – embora ele não use este termo – a nova, verdadeira ortodoxia.
Essa é a verdadeira provocação do livro, mesmo que a maior parte das suas páginas, que são lidas com grande interesse mas se movem em binários mais usuais, são dedicadas à re-evocação e à ilustração de grandes figuras da história da heresia: Joaquim de Fiore, com a sua “terceira idade do Espírito”; Giordano Bruno, com o seu naturalismo antidogmático; Girolamo Savonarola, com o seu querer fazer de Cristo – contra todo soberano, Papa ou senhor – “o rei de Florença”; o modernismo de Ernesto Buonaiuti; até figuras e movimentos que, mesmo controversos, não podem ser consideradas heresia, como Teilhard de ChardinPapa João XXIII, o Concílio Vaticano II, as teologias da libertação, as teologias feministas, as teologias africanas, as comunidades de base e assim por diante. Mas se disséssemos que o Concílio é herético, daríamos razão a quem o teme como causa de “anarquismo espiritual”.
O ponto de novidade proposto pelo livro consiste em fazer da heresia a chave interpretativa da história e até da existência de tudo, já que até o Big Bang, do qual foi liberada a força primordial criadora do universo, seria uma grande heresia, a primeira.
Para o Pe. Mazzi, porém, essa não é uma tese, mas sim uma intuição, portanto, não tem nenhum caráter normativo. As intuições são como “sonhos noturnos a serem decifrados”, o que não significa que estejam em contraste com a racionalidade. O sonho, porém, deve ser interpretado, é também memória do vivido.
Isso, sem dúvida, tem de fundo uma experiência de perseguição, que faz parte da autobiografia do autor e o coloca no mesmo nível dos hereges dos quais fala. E é um sonho não isento de pesadelos, como as torturas e as fogueiras aos quais muitos deles, no passado, foram submetidos.
Quanto ao conteúdo do sonho, ele consiste em identificar um novo princípio de tudo, uma“arché”. Se, para os judeus, no princípio havia o Deus criador, para Eráclito era“pólemos”, a guerra; para os cristãos era o Verbo, aqui, ao invés, no princípio, é a heresia. É ela a grande mãe, a força geradora primordial, princípio de toda transformação, energia expansiva contra a imobilidade de um universo contraído e diminuído. É ela que serve de fundamento e de discernimento da realidade.
A heresia é sobretudo antitética ao sonho da imortalidade com o qual os homens buscam enfrentar a angústia da morte. Essa recusa da morte seria o primeiro dogma, a primeira ortodoxia, da qual todos os outros dogmas derivariam e da qual, por sua vez, descenderiam a cultura dos absolutos, a invenção dos deuses e do deus único onipotente, com todo a construção do sagrado.
Contra a heresia, estaria a pacificação profunda entre a vida e a morte, o ato de dar a vida não no sentido sacrifical, mas na aceitação alegre da morte. A outra heresia, que descende desta, é a do amor contra a violência de uma natureza humana imaginada como corrompida e dominada pelo pecado. E, além disso, a heresia da convivialidade contra um mundo considerado como inevitavelmente destinado ao domínio.
No coração dessas antíteses, compreende-se a mensagem, senão a tese, desse livro: não é verdade que somos feitos para a violência, para a destrutividade, para o domínio e para a guerra: não o somos nem biológica nem divinamente. Ao contrário, somos determinados à paz (“matéria com a qual toda a realidade é feita”), ao amor (“impresso no nosso profundo e talvez no profundo do próprio universo”), à convivialidade (que está “na origem da história”, como mostram as descobertas da cultura ancestral).
Há uma sugestão nesse sonho, mas surgem também algumas dificuldades. No senso comum, a heresia é uma realidade segunda, que se põe em contraste com uma outra que está diante dela, que pré-existe a ela, que seria justamente a ortodoxia, a verdade. Aqui, ao invés, a heresia é a causa primeira, subtraída à dialética. Militando contra todos os absolutos ela se torna o absoluto; contra as transcendências, se faz transcendência; contra o sonho da imortalidade, se faz metafísica. Certamente, ela entra depois na história, mas descende dos céus da ideia.
A outra dificuldade é supor que haja uma determinação ao bem, ao invés do mal. Mas o ser homem e o ser mulher estão na liberdade: isso quer dizer que eles não são determinados para o mal (como desejariam as antropologias pessimistas), mas nem para o bem. São não determinados: o bem deve ser escolhido. Mazzi admite que o amor e a paz podem ser dons de Deus, mesmo que de um Deus pensado “de modo novo”, fora das transcendências e onipotências e verdades exclusivas. Mas se Deus entra novamente em jogo, então, antes do dom, no homem está impressa a sua imagem, que consiste justamente na liberdade. E é na força dessa imagem de Deus nele que o homem é livre para escolher tanto o bem quanto mal. E então o bem talvez não seja necessariamente a heresia, mas é a semelhança com Deus, livre resposta a um livre dom.

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