Indo além das “Cosmovisões”
Posted by: vinoth-ifes on: February 16, 2014
(Vinoth Ramachandra)

O grande teólogo suíço Karl Barth observou que “a alegria é mesmo a forma mais simples de gratidão” e também como é comum o tema da alegria e celebração na Bíblia: “Trata-se da alegria genuína, terrena, humana; a alegria da colheita, do casamento, da festa e da vitória; a alegria não só do homem interior mas também do homem exterior; a alegria na qual se pode e deve beber vinho e comer pão, cantar e tocar e também falar, dançar e, da mesma forma, orar.”
Barth não nega que a tristeza, a raiva, a dúvida e a dor têm também seu lugar legítimo na vida cristã. Além do mais, a depressão e as doenças da mente já fizeram parte da experiência de vários dos maiores santos da Igreja. Mas a “afirmação da vida comum” (segundo o filósofo canadense Charles Taylor), redescoberta na época da Reforma europeia e confrontada com uma espiritualidade medieval de negação do mundo, derruba o muro que divide o sagrado do secular e mergulha os cristãos nas profundezas da vida corporal e da criação cultural.
Se, por um lado, os herdeiros de Calvino não são tão conhecidos por causa da sua alegria, por outro eles têm sido responsáveis por profundas transformações culturais e políticas nas sociedades ocidentais. Inclusive, é a um desses herdeiros da Reforma Calvinista, o político holandês Abraham Kuyper (1837-1920), que devemos a célebre e notável frase: “Não há um centímetro quadrado dentre todos os domínios da nossa existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não diga ‘é meu!’”
Kuyper popularizou a ideia de uma “cosmovisão cristã” singular. Considerando que os cristãos possuem visões fundamentalmente diferentes da realidade e da humanidade em relação àquelas dos não-cristãos, e assim vêm o “mundo” através de “lentes” diferentes, eles deveriam criar uma forma singularmente cristã de conhecimento através do seu trabalho intelectual. Uma “biologia cristã” distinta, não menos que uma “filosofia cristã” ou “economia cristã” distintas.
Acontece que eu nunca me convenci muito disso, já que essa noção parece ignorar o que Kuyper, em outras ocasiões, chamou de graça comum de Deus (outra ênfase calvinista) – que todas as pessoas, em qualquer lugar, cristãs ou não-cristãs, usufruem das bênçãos da criação dadas pelo Criador, bem como de seus dons criativos. Além do mais, nós partilhamos muito de nossa vida em comum com os outros, enfrentando desafios e atendendo a necessidades comuns. O acadêmico cristão tem em vista sua formação acadêmica, não tanto para obter destaque quanto para ser fiel a Cristo. Se, na sua dedicação acadêmica, for levado a dizer coisas que são realmente de destaque, ótimo. Mas, caso contrário, isto não necessariamente reflete uma falta de discernimento cristão.
Muitas vezes o estudo acadêmico de cristãos vai estar de acordo com o que os outros podem também dizer que é verdadeiro, certo ou justo; enquanto também expõe, lança luz e julga crenças e práticas que distorcem ou ocultam aspectos importantes da realidade. Sendo o mundo o que é, e nós seres humanos o que somos, é de se esperar que muita coisa acabe se sobrepondo, e devemos inclusive estar preparados para aprender com os outros.
Em uma biografia recente de Kuyper, o historiador James Bratt lembra que ele foi, como qualquer um de nós, influenciado pelos preconceitos sociais e culturais da sua época. Ele não tinha escrúpulos em falar da “superioridade da civilização ocidental” e não poupou comentários pejorativos sobre os povos africanos. Mesmo como primeiro-ministro, ele nunca questionou o direito da Holanda de colonizar a Indonésia, ainda que promovendo uma forma mais paternalista e eticamente responsável de governo colonial do que seus antecessores. Ainda que seja difícil provar, o discurso de Kuyper sobre as “cosmovisões” poderia facilmente ser usado para justificar a doutrina de “desenvolvimento separado” dos colonizadores holandeses e africanos nativos na África do Sul.
Pegue um livro que tente descrever a tal “cosmovisão cristã” e, de cara, fica óbvio onde o autor mora e de qual grupo sociocultural ele faz parte. Considerando que a maior parte deles vem de um contexto americano de classe média ou média-alta, não é de se surpreender que vejamos o Sonho Americano se insinuando como a “cosmovisão cristã”. São poucos os kuyperianos entusiastas da “cosmovisão” que participam de movimentos como o “Occupy Movement”, que expõem a hipocrisia das políticas de imigração ou que fazem campanhas contra o uso de drones (aviões não tripulados usados em guerras).
Será que um lavrador cristão do Nepal vê o mesmo “mundo” que um banqueiro cristão em Tóquio? Ou então um advogado empresarial cristão em Wall Street e um operário de chão de fábrica em Detroit…
As cosmovisões (ou estruturas de interpretação) são como “mapas funcionais”. Nossas mais arraigadas crenças funcionais não são necessariamente aquelas que declaramos, mas as que pensamos que não precisamos declarar – porque pensamos que são universais. O historiador eclesiástico Andrew Walls lembra que, ainda que Deus seja reconhecido como Criador por todos os cristãos africanos, na sua “religião funcional” Deus recebe muito menos atenção do que as divindades territoriais que controlam o lugar, ou os ancestrais que guardam a família e o clã, ou ainda os seres intermediários de algum outro tipo. Nos seus mapas de cosmovisão, portanto, Deus aparece em posição relativamente menor que outras entidades.
Eu nunca vi uma discussão sobre o lugar dos ancestrais (“a nuvem de testemunhas”, Hebreus 12:1) quando se ensina sobre a “cosmovisão cristã” nos círculos teológicos eclesiásticos ocidentais. Tampouco sobre a centralidade da justiça econômica, a hospitalidade para com os de fora ou a reconciliação étnica.
Está bem claro que os cristãos cuja “cosmovisão” foi formada em um contexto terão um mapa funcional da realidade um tanto quanto diferente daquele daqueles cuja cosmovisão foi formada em outro contexto. Não existe uma cosmovisão cristã única, mas várias – todas em mudança e desenvolvimento, ainda que compartilhem entre elas alguns “traços de família” que permitam identificá-las como cristãs. Ao mesmo tempo, Walls observa que as “cosmovisões cristãs podem ter elementos importantes em comum com cosmovisões não-cristãs das culturas das quais vieram – características que serão diferentes daquelas dos mapas de cosmovisão dos outros cristãos de outro contexto cultural.” E eu acrescentaria “contexto social e histórico”.
Daí a necessidade de se contrapor nossas diferenças e divisões.
Barth não nega que a tristeza, a raiva, a dúvida e a dor têm também seu lugar legítimo na vida cristã. Além do mais, a depressão e as doenças da mente já fizeram parte da experiência de vários dos maiores santos da Igreja. Mas a “afirmação da vida comum” (segundo o filósofo canadense Charles Taylor), redescoberta na época da Reforma europeia e confrontada com uma espiritualidade medieval de negação do mundo, derruba o muro que divide o sagrado do secular e mergulha os cristãos nas profundezas da vida corporal e da criação cultural.
Se, por um lado, os herdeiros de Calvino não são tão conhecidos por causa da sua alegria, por outro eles têm sido responsáveis por profundas transformações culturais e políticas nas sociedades ocidentais. Inclusive, é a um desses herdeiros da Reforma Calvinista, o político holandês Abraham Kuyper (1837-1920), que devemos a célebre e notável frase: “Não há um centímetro quadrado dentre todos os domínios da nossa existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não diga ‘é meu!’”
Kuyper popularizou a ideia de uma “cosmovisão cristã” singular. Considerando que os cristãos possuem visões fundamentalmente diferentes da realidade e da humanidade em relação àquelas dos não-cristãos, e assim vêm o “mundo” através de “lentes” diferentes, eles deveriam criar uma forma singularmente cristã de conhecimento através do seu trabalho intelectual. Uma “biologia cristã” distinta, não menos que uma “filosofia cristã” ou “economia cristã” distintas.
Acontece que eu nunca me convenci muito disso, já que essa noção parece ignorar o que Kuyper, em outras ocasiões, chamou de graça comum de Deus (outra ênfase calvinista) – que todas as pessoas, em qualquer lugar, cristãs ou não-cristãs, usufruem das bênçãos da criação dadas pelo Criador, bem como de seus dons criativos. Além do mais, nós partilhamos muito de nossa vida em comum com os outros, enfrentando desafios e atendendo a necessidades comuns. O acadêmico cristão tem em vista sua formação acadêmica, não tanto para obter destaque quanto para ser fiel a Cristo. Se, na sua dedicação acadêmica, for levado a dizer coisas que são realmente de destaque, ótimo. Mas, caso contrário, isto não necessariamente reflete uma falta de discernimento cristão.
Muitas vezes o estudo acadêmico de cristãos vai estar de acordo com o que os outros podem também dizer que é verdadeiro, certo ou justo; enquanto também expõe, lança luz e julga crenças e práticas que distorcem ou ocultam aspectos importantes da realidade. Sendo o mundo o que é, e nós seres humanos o que somos, é de se esperar que muita coisa acabe se sobrepondo, e devemos inclusive estar preparados para aprender com os outros.
Em uma biografia recente de Kuyper, o historiador James Bratt lembra que ele foi, como qualquer um de nós, influenciado pelos preconceitos sociais e culturais da sua época. Ele não tinha escrúpulos em falar da “superioridade da civilização ocidental” e não poupou comentários pejorativos sobre os povos africanos. Mesmo como primeiro-ministro, ele nunca questionou o direito da Holanda de colonizar a Indonésia, ainda que promovendo uma forma mais paternalista e eticamente responsável de governo colonial do que seus antecessores. Ainda que seja difícil provar, o discurso de Kuyper sobre as “cosmovisões” poderia facilmente ser usado para justificar a doutrina de “desenvolvimento separado” dos colonizadores holandeses e africanos nativos na África do Sul.
Pegue um livro que tente descrever a tal “cosmovisão cristã” e, de cara, fica óbvio onde o autor mora e de qual grupo sociocultural ele faz parte. Considerando que a maior parte deles vem de um contexto americano de classe média ou média-alta, não é de se surpreender que vejamos o Sonho Americano se insinuando como a “cosmovisão cristã”. São poucos os kuyperianos entusiastas da “cosmovisão” que participam de movimentos como o “Occupy Movement”, que expõem a hipocrisia das políticas de imigração ou que fazem campanhas contra o uso de drones (aviões não tripulados usados em guerras).
Será que um lavrador cristão do Nepal vê o mesmo “mundo” que um banqueiro cristão em Tóquio? Ou então um advogado empresarial cristão em Wall Street e um operário de chão de fábrica em Detroit…
As cosmovisões (ou estruturas de interpretação) são como “mapas funcionais”. Nossas mais arraigadas crenças funcionais não são necessariamente aquelas que declaramos, mas as que pensamos que não precisamos declarar – porque pensamos que são universais. O historiador eclesiástico Andrew Walls lembra que, ainda que Deus seja reconhecido como Criador por todos os cristãos africanos, na sua “religião funcional” Deus recebe muito menos atenção do que as divindades territoriais que controlam o lugar, ou os ancestrais que guardam a família e o clã, ou ainda os seres intermediários de algum outro tipo. Nos seus mapas de cosmovisão, portanto, Deus aparece em posição relativamente menor que outras entidades.
Eu nunca vi uma discussão sobre o lugar dos ancestrais (“a nuvem de testemunhas”, Hebreus 12:1) quando se ensina sobre a “cosmovisão cristã” nos círculos teológicos eclesiásticos ocidentais. Tampouco sobre a centralidade da justiça econômica, a hospitalidade para com os de fora ou a reconciliação étnica.
Está bem claro que os cristãos cuja “cosmovisão” foi formada em um contexto terão um mapa funcional da realidade um tanto quanto diferente daquele daqueles cuja cosmovisão foi formada em outro contexto. Não existe uma cosmovisão cristã única, mas várias – todas em mudança e desenvolvimento, ainda que compartilhem entre elas alguns “traços de família” que permitam identificá-las como cristãs. Ao mesmo tempo, Walls observa que as “cosmovisões cristãs podem ter elementos importantes em comum com cosmovisões não-cristãs das culturas das quais vieram – características que serão diferentes daquelas dos mapas de cosmovisão dos outros cristãos de outro contexto cultural.” E eu acrescentaria “contexto social e histórico”.
Daí a necessidade de se contrapor nossas diferenças e divisões.
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Samuel Pessoa
Muito bom o texto! Parabéns.
billybh
Samuel,
Muito obrigado.