O que os bancos de dados de identificação pessoal têm a ver com a biopolítica?

Desde o início dos anos 2010 iniciou-se um processo de implementação de bancos de dados biométricos no Brasil com diversas justificativas: identificação pessoal, redução de fraudes eleitorais, facilitação das investigações criminais, redução da quantidade de documentos que precisam ser portados entre outras.

Os dados biométricos são as características individuais estudadas pela área da ciência chamada biometria, que estuda dados biológicos através de métodos estatísticos de comparação. A partir do conhecimento adquirido com os estudos na área da biometria é possível diferenciar as pessoas com maior precisão a partir da análise de determinados dados biofísicos: especialmente impressões digitais, plantares e palmares, DNA e impressões da arcada dentária.

A coleta de impressões digitais para a confecção de documentos de identificação é usada há muito tempo, sendo ampliados os dados biológicos fornecidos para análise biométrica, inclusive em cadastramentos biométricos de grandes Bancos. Tudo em nome da segurança, é claro.

No atual cenário de crise política e econômica, ganha evidência o fenômeno chamado de judicialização de todas as esferas da vida individual e social, que consiste em exigir do Judiciário respostas para conflitos em todas as esferas da vida, sobretudo nas relações de vizinhança, nas relações escolares e nas relações de representação política. O uso da biometria se apresenta como um desdobramento da judicialização na medida em que tem o potencial de facilitar e agilizar o grande volume de trabalho produzido através da judicialização: sendo mais precisas as informações pessoais, maior credibilidade essas informações recebem, evitando a judicialização, em alguns casos, e fornecendo dados mais precisos para solucionar outros, como em casos de dúvida sobre fraude eleitoral, por exemplo. Até o momento três foram as iniciativas no sentido de implementar cadastros biométricos.

Em 22 de fevereiro de 2011 o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução nº 23.335 para “disciplinar” a revisão do eleitorado, incorporando a identificação de eleitores através de dados biométricos. A opção pelo uso da técnica biométrica foi justificada pela necessidade de reduzir fraudes eleitorais. Esse termo, disciplinar, é perfeito, especialmente se compreendido a partir do pensamento de Michel Foucault, que estudou as técnicas de poder utilizadas para controlar os corpos dos indivíduos e as definiu como disciplina.

Em 28 de maio de 2012 foi a vez da criação do banco de dados de perfis genéticos, criado através da Lei nº 12.654 para coletar material genético em duas circunstâncias: (a) identificação criminal de pessoa: (i) com documento rasurado, (ii) com documento aparentemente falsificado, (iii) com documento insuficiente para a identificação, (iv) com documento emitido em local distante ou há muito tempo, (v) com nomes diferentes em registros policiais ou (vi) cuja identificação for essencial para investigação policial; ou (b) registro de pessoas condenadas por crimes hediondos ou crimes dolosos (intencionais) praticados com violência grave.

Nesse caso a opção pela coleta de material genético foi justificada pela facilitação das investigações criminais, o que é ainda mais importante em Tempos de Violência[1] quando o clamor por segurança é maior.

Em 11 de abril de 2017 foi aprovado o Projeto de Lei da Câmara nº 19, de 2017, que autoriza a criação de um banco de dados nacional com informações que permitirão a identificação de todos os cidadãos, chamada de Identificação Civil Nacional. O projeto foi sancionado pelo presidente, tornando-se a Lei nº 13.444, de 11 de maio de 2017, cujo art. 3º dispõe:

Art. 3º. O Tribunal Superior Eleitoral garantirá aos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios acesso à base de dados da ICN, de forma gratuita, exceto quanto às informações eleitorais.

Uma das justificativas para a aprovação do projeto é a facilitação da vida do cidadão, que passará a ter um único documento que conterá todas as numerações utilizadas para nos individualizar (rectius disciplinar).

Esses casos importam à Filosofia e ao Direito na medida em que o exercício do poder, chamado de disciplina, tem por objetivo a criação de corpos submissos, docilizados, aumentando a dominação da exploração econômica e reduzindo os riscos de desobediência.

Nesse contexto, a vida biológica se tornou propriedade do poder soberano que age diuturnamente a partir da lógica de potencializar o viver e administrar a morte do indivíduo. As diversas técnicas de governo implementadas com a finalidade de produção de novos saberes destinados ao controle da espécie humana, ou seja, na criação de técnicas para descrever, quantificar e combinar dados sobre nascimentos, óbitos, criminalidade, longevidade, morbidade, entre outros, compõem a biopolítica.

Nesta crônica não pretendemos criticar as técnicas implementadas com a finalidade de dificultar as vidas de todos, inclusive as nossas, mas desvelar os mecanismos encobertos pelos discursos de facilitação da vida e de incremento da segurança, bem como chamar atenção para as possíveis consequências para a população. Tudo isso porque o discurso da segurança não pode servir de carta coringa para justificar a restrição da liberdade de todos de acordo com a conveniência do poder soberano. Da forma como tudo está sendo encaminhado, parece-nos que a resposta à pergunta formulada no título é simples: tudo! Os bancos de dados são parte da biopolítica.

As perguntas que temos em relação aos usos de todos esses dados armazenados são: O que é possível descobrir sobre as pessoas a partir da combinação dos dados armazenados? Os dados serão combinados para formar perfis de cada pessoa? Quantos outros bancos de dados serão criados? Quais informações serão armazenadas? Quem terá acesso a esses dados? Quando e por que esses dados serão acessados? Ainda é possível fazer algo sem ser controlado? O armazenamento de todos esses dados é realmente necessário?


[1] Blague com o filme Harsh Times que retrata diversas cenas de violência na cidade de Los Angeles e alimenta o imaginário social sobre a violência nas cidades.

Luiz Eduardo Cani

Mestrando em Desenvolvimento Regional (UnC)

Professor de Direito Criminal (UnC)

Sandro Luiz Bazzanella

Doutor em Ciências Humanas (UFSC)

Professor de Filosofia e do Mestrado em Desenvolvimento Regional (UnC)

Fonte

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