DA TEOLOGIA POLÍTICA À TEOLOGIA ECONÔMICA ENTREVISTA COM GIORGIO AGAMBEN

Em recente congresso sobre Walter Benjamin, realizado em Roma no final de 2003, Giorgio Agamben2 proferiu conferência em que antecipa alguns resultados da sua atual pesquisa sobre “teologia econômica”. Entrevistamo-lo sobre este assunto e sobre as possíveis relações com o tema do presente número da Revista que foi inspirado pela referida conferência. A entrevista realizou-se na casa romana de Agamben, na tarde da segunda-feira, dia 08 de março de 2004.
Giorgio Agamben, o seu último trabalho, Stato di eccezione (Estado de Exceção), publicado há pouco menos de um ano, situa-se dentro do projeto Homo Sacer, sua obra da metade dos anos noventa, que trata dos temas do ‘poder soberano’, ‘vida nua’, ‘campo de concentração como nómos do moderno’. Trabalho complexo que se põe na perspectiva das temáticas e da metodologia de Foucault. Porventura esta sua nova pesquisa sobre a teologia econômica se situa no mesmo horizonte?
– Vejo o meu trabalho sem dúvida próximo daquele de Foucault. Nas minhas duas últimas pesquisas sobre o “estado de exceção” e sobre a “teologia econômica”, procurei aplicar o mesmo método genealógico e paradigmático que praticava Foucault. Por outro lado, Foucault trabalhou em tantos campos, mas os dois que deixou de fora são, exatamente, o direito e a teologia, e me pareceu natural dedicar minhas duas últimas pesquisas precisamente nesta direção.
– Mas como conseguiu redescobrir este conceito “esquecido” da teologia econômica e quando decidiu torná-lo “paradigmático” para a sua pesquisa?
– O ponto de partida da pesquisa o encontrei nos estudos que estava desenvolvendo nos últimos anos sobre Schmitt e a Teologia política e, em especial quando estava estudando melhor o debate entre Carl Schmitt e Erik Peterson5, que ocorreu mais ou menos entre 1935 e 1970. Trabalhando sobre os mesmos teólogos com que Peterson faz a análise, no seu livro sobre o monoteísmo, com o objetivo de encontrar a origem daquela teologia política que pretende criticar (desde os primeiros apologetas, Justino e Inácio de Antioquia, até sobretudo Tertuliano), me dei conta de que no centro dos seus textos não havia apenas e nem tanto os conceitos de monarquia e de teologia política, que Peterson reconstrói, mas outro conceito: a oikonomía. Um fato curioso é que toda vez em que este conceito aparecia, Peterson interrompia a citação. Relendo tais textos, perguntei-me porque exatamente, nesta reconstrução, tal conceito era removido. Assim, dei-me conta de que o conceito de oikonomía era central nestes autores e procurei fazer a sua genealogia. Imediatamente tornou-se claro que da teologia cristã derivam dois paradigmas políticos em sentido amplo: a teologia política, que baseia a transcendência do poder soberano no único Deus, e a teologia econômica, que substitui tal idéia com uma oikonomía, concebida como uma ordem imanente – doméstica e não política em sentido estrito, tanto da vida divina como da vida humana. Do primeiro paradigma derivam a filosofia política e a teoria moderna da soberania: do segundo, a “biopolítica” moderna, até o atual triunfo da economia sobre qualquer aspecto da vida social. O livro que estou escrevendo nasceu desta descoberta. Procurei reconstruir a origem do conceito teológico de oikonomía e, depois, na segunda parte, seguir o seu desaparecimento e a secularização na modernidade. Parece-me que tal conceito num certo momento desaparece, para voltar com o nascimento da economia animal e da economia política no século XVIII.
– Portanto, o senhor põe-se em contraste com a atenção unívoca, dada por Peterson e por Schmitt, à vinculação entre teologia e política. Uma atenção tão especial que lhe parece quase suspeita. Mas, segundo a sua opinião, eles tinham consciência desta “remoção” da oikonomía do horizonte teológico?
– Sem dúvida! A cultura teológica de Peterson era vastíssima e nem sequer é pensável que ignorasse o problema. De resto, ele interrompe as citações, por exemplo, no caso de Tertuliano, exatamente no ponto em que comparece o termo oikonomía. Schmitt, por sua vez, via com clareza o que poderíamos definir o triunfo da economia e a despolitização do mundo que isso comportava na modernidade; mas para ele era estrategicamente importante negar que tal desenvolvimento tivesse um paradigma teológico. Não só porque equivaleria a conferir uma patente de nobreza teológica para a economia, mas também e sobretudo porque isso poria em questão a possibilidade mesma do paradigma teológicopolítico que ele considerava importante.
– Voltemos, porém, ao início da sua investigação reconstrutiva e ao conceito de oikonomía, censurado por Peterson, mas, precisamente, utilizado pela teologia patrística. A referência natural pareceria ser Aristóteles, mesmo que o seu conceito seja bem diferente do significado atual de economia. Mas qual a noção que tinham os Padres da Igreja?
– Obviamente o termo oikonomía de que se serviam tais teólogos é o mesmo termo deAristóteles, que no grego designa em primeiro lugar a administração da casa. Mas oikos, a casa grega, é um organismo complexo, no qual se entrelaçam relações heterogêneas, desde os vínculos de parentesco em sentido restrito, até àqueles entre patrão-escravo e à gestão de uma empresa agrícola muitas vezes de dimensões amplas. O que mantém unidas tais relações é um paradigma que poderíamos definir “gerencial”: trata-se de uma atividade que não está vinculada a um sistema de normas nem constitui uma episteme, uma ciência em sentido próprio, mas implica decisões e disposições diferentes em cada oportunidade para enfrentar problemas específicos. Neste sentido, uma tradução correta do termo oikonomía seria, conforme sugere Liddel-Scott, management.
– E por que os Padres da Igreja tinham necessidade desse conceito?
– A exigência nasce no decurso do séc. II, quando se começa a formular aquilo que mais tarde, com os Concílios de Nicéia6 e de Constantinopla, se tornará o dogma trinitário. Os Padres que começam a elaborar a trindade tinham diante de si adversários, os assim chamados monarquianistas, que afirmavam que Deus era Uno e que, introduzindo outras duas figuras divinas, se corria o risco de recair no politeísmo. O problema consistia na maneira de conciliar a trindade, de que não se podia prescindir, com a monarquia, ou seja, o monoteísmo, igualmente indispensável. A oikonomía é o conceito, o instrumento, o órgão que torna possível tal concepção e tal passagem.O raciocínio é simples: Deus, quanto à sua essência e à sua natureza, é Uno; quanto à sua oikonomía, à gestão do seu oikos, da sua casa, da sua vida divina, pode por sua vez ter um filho e apresentar-se numa figura tríplice. O paradigma gerencial da oikonomía é precisamente o que torna possível a conciliação da trindade com o monoteísmo.
– Quais são as implicações dessa escolha terminológica?
– Para Aristóteles, oikos e polis são contrapostos, e economia e política são distintas assim como a casa é distinta da cidade, ou seja, algo essencial, e não meramente quantitativo. Em Xenofonte já é diferente; nos estóicos os dois conceitos tendem a ficar indeterminados. O que é interessante, do meu ponto de vista, é que quando se chega aos teólogos cristãos, estes transformam o conceito de oikonomía no paradigma teológico essencial. A pergunta que nesta altura surgia é espontânea: por que os teólogos compreendem a vida divina e o governo divino da terra como uma economia, e não como uma política?
– O senhor dizia antes que, num determinado momento, esta referência econômica desaparece do conceito trinitário, e por que motivo?
– Os motivos são óbvios, mesmo que nunca tenham sido explicitados. Quando se chega a Nicéia, aos grandes Concílios, podemos observar já o desenvolvimento de um vocabulário filosófico-teológico sofisticado, como a concepção da homoousia, da unidade de substância. A oikonomía, que foi o paradigma através do qual antes se pensava a trindade, de maneira pragmática e não teórica, transforma-se em algo parecido com uma pudenda origo que se deve pôr de parte.
– Portanto, estamos percorrendo uma história das idéias teológicas, e, numa certa altura, vemos desaparecer a referência clara à oikonomía da trindade. Para voltar a emergir quando? Devemos esperar por Schelling, como o senhor antecipava de passagem no congresso sobre Benjamin, ou então, mesmo que esporadicamente, noutros períodos e contextos históricos?
– Uma parte do trabalho que pretendo realizar consiste em reconstruir esta fase intermediária. Isso porque num determinado momento acontece que o conceito de oikonomía se funde com o de prónoia, de providência. Com Clemente de Alexandria, a fusão já está perfeitamente efetuada. Clemente afirma com clareza que a oikonomía seria irracional e absurda se não assumisse a forma de uma providência divina que guia o processo da história. E aqui o discurso torna-se, na minha opinião, muito interessante. Foi dito tantas vezes que os antigos tinham uma visão cíclica da temporalidade, enquanto a concepção da história da filosofia e da teologia cristã é linear. Mas as coisas são, na realidade, mais complicadas. Quando, com Clemente e Orígenes, vemos nascer o primeiro embrião de uma concepção cristã da história, com uma inversão singular de uma expressão paulina, ela se apresenta como um “mistério da economia”. A história é, pois, uma economia misteriosa, um mistério divino que é objeto da revelação cristã e que o ser humano deve aprender a decifrar. Hegel (e Marx depois dele) retomam este paradigma para desvelar definitivamente o mistério.
– Já teve oportunidade de verificar se nos textos de Hegel, por exemplo, nos Escritos Teológicos Juvenis, comparece de algum modo uma referência ao mistério teológicoeconômico da história?
– Penso poder afirmar que a diferença entre Schelling e Hegel reside exatamente na maneira diferente de entenderem a herança teológica da oikonomía.
– Mas, fechando o parêntese hegeliano, e voltando à história como mistério econômico, o que o senhor considera especialmente interessante nesse conceito?
– Por um lado, que, no fundo, é através deste mistério da economia que os primeiros embriões de uma concepção da história do cristianismo aparecem. Por outro, que tanto a vida divina quanto o governo divino do mundo e o curso da história enquanto revela tal plano divino do mundo são uma economia e não uma política. Conforme dizia antes, isso significa que da teologia cristã deriva uma teologia econômica, e não uma teologia política. A teologia política pode afirmar-se unicamente com a suspensão da teologia econômica: é daqui que surge a doutrina schmittiana do kat-echon, que é uma suspensão, um adiamento deste plano econômico que rege o mundo. A teologia política segundo Schmitt pode basear-se unicamente num prolongamento e num adiamento da economia.
– Desta forma, aproximamo-nos do nascimento do novo conceito moderno de economia, no qual Weber encontrará uma raiz em certo sentido teológica na célebre obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Mas antes de chegar ao século apenas terminado, pergunto—lhe se também abordou uma relação entre ética, economia e teologia em Spinoza, especialmente no Tractatus theologico-politicus?
– É um problema que ainda não enfrentei. Aquilo de que estou bastante certo é que o paradigma econômico continua presente numa dimensão subterrânea durante toda a Idade Média, com o nascimento da economia animal. Na Encyclopédie, há dois verbetes distintos: économie politique e économie animale. Trata-se de duas coisas que nada têm em comum, pois a économie animale se refere à medicina e às ciências da natureza, enquanto a économie politique se aproxima da nossa economia política. Acredito ser possível demonstrar que a economia animal deriva do paradigma da economia teológica. E se pensarmos que no séc. XVIII os mesmos autores que estão na origem da economia política (como Quesnay e outros fisiocratas) também escrevem tratados sobre a economia animal, poder-se-ia, mesmo com prudência, sugerir a hipótese de uma possível genealogia teológica da economia moderna.
– Na terminologia schmittiana, poder-se-ia afirmar que a economia moderna é uma secularização da economia teológica?
– Não acredito que isso seria exato. O que proponho fazer é, antes, reconstruir a história, freqüentemente esquecida, da economia teológica, encontrando indícios e rastos de uma influência dela no nascimento da economia política. A noção de “mão invisível” em Adam Smith é, sem duvida, um desses rastos.
– Nesta altura, tendo acabado de citar a “mão invisível” de Smith, e seguindo a
interpretação que dava da providência, vem à mente a analogia, intuída por Schmitt9 e
retomada por Benjamin10, entre estado de exceção e o conceito teológico de “milagre”.
Não existe uma relação entre tal referência ao milagre, o estado de exceção e o paradigma teológico-econômico que parece atravessar a teologia, a economia, a política e o direito?
– Certamente. Um dos resultados da minha pesquisa sobre o estado de exceção havia sido exatamente a idéia de uma dúplice estrutura da ordem jurídico-política do Ocidente, que parece basear-se ao mesmo tempo num elemento normativo e jurídico em sentido restrito, e também num elemento anômico e extra-jurídico. A economia teológica, enquanto paradigma essencialmente gerencial e não normativo, está certamente do lado do estado de exceção.
– Sob os nossos olhos começa a delinear-se uma categoria de interpretação que permitiria ler a situação atual, a globalização, como um texto já escrito, no qual, no final das contas, o direito nunca foi normativo, enquanto foi esse o caso do governo do econômico.
– O que me parece poder ser observado a partir dessa investigação sobre a teologia econômica é que a história da nossa cultura, da política ocidental é a história das oposições e dos cruzamentos entre um paradigma econômico e um paradigma político em sentido restrito. A economia é o aspecto gerencial e não normativo, tanto da vida divina quanto da realidade histórica. Retomando uma citação schmittiana (“le roi règne, mais il ne gouverne pas”), poder-se-ia denominar “reino” o primeiro paradigma, e “governo” o segundo. Sob esta perspectiva, a história do sistema político do Ocidente aparece como a história da contínua separação e cruzamento entre os dois paradigmas. É evidente que Foucault trabalhou sobretudo o segundo paradigma, aquele que é denominado le gouvernement des hommes. Eu gostaria de trabalhar sobretudo o cruzamento entre ambos, embora seja evidente que hoje há um predomínio do segundo.
– Portanto, a economia, num contexto globalizado, é o que governa, é oikonomía?
– Diria que não podemos entender o triunfo da economia hoje em dia se não o entendermos ao mesmo tempo como triunfo do paradigma gerencial da oikonomía teológica.
– Desta maneira, a economia mostraria a sua verdadeira face: a máscara política é tirada e aparece o governo do oikonomico, ou melhor, do teológico-econômico. Seria possível definir tal processo, segundo uma terminologia schmittiana, como uma dessecularização: da economia para a teologia? Por outro lado, o termo parece o mesmo, e a economia não faria outra coisa senão retomar o lugar do direito e da política, pois no fundo sempre esteve ali.
– Digamos que o domínio atual da economia já tinha seu paradigma na oikonomía. É verdade que, no passado, reino e governo sempre estiveram entrelaçados e que a história não é senão tal cruzamento. Mas, do ponto de vista teológico, o que dominava desde o início era o paradigma do governo, da economia da vida divina. Em termos filosóficos, isso corresponde à oposição entre um paradigma ontológico (o ser, a substância divina) por um lado, e um paradigma absolutamente pragmático, por outro. O predomínio da ontologia escondeu a presença, tão decisiva ou até mais decisiva, do elemento oikonômico-pragmático. Hoje a situação se inverteu. Mas ambos os elementos são necessários para o funcionamento do sistema.
– Continuando no campo filosófico e especialmente nas origens da filosofia, reapareceria assim a dicotomia entre Platão e Aristóteles?
– Sempre é difícil radicalizar, há sempre tudo em tudo. Mas diria que Aristóteles dá ao Ocidente a filosofia primeira, a ontologia, a doutrina do ser; em Platão, por sua vez, há a primazia do ethos, do que está para além do ser, do elemento pragmático-político.
– Voltando por um momento à oikonomía aristotélica, parecia-me que na breve conferência que proferiu no recente congresso internacional sobre Benjamin o senhor procurasse fazer uma interpretação da essência do capitalismo, que, partindo dos conceitos oikonômicos de servo e de escravo delineados no Tratado de Política de Aristóteles, chegasse a ver hoje uma espécie de “imanentização” da própria teologia econômica.
– Afirmar que procuro reconstruir a essência do capitalismo é sem dúvida demasiado. Certamente a idéia de uma ordem imanente é essencial, e se encontra também na economia antiga, de Aristóteles a Xenofonte. Sabe-se que a economia grega não é uma economia da produção, mas da gestão da casa, da ordem das coisas. A crematística, o lucro, ficava de fora da economia antiga. Creio, porém, que tal idéia de ordem que estamos acostumados a pensar como secundária na economia moderna, constitui, pelo contrário, um pressuposto essencial, e isso vincula a economia antiga à economia moderna. O paradigma teológico representa uma espécie de elemento médio entre as duas.
– Para finalizar, retomando a observação de Gentile (“Silete theologi in munere alieno”), qual é, nesta altura, a teologia que deveria e deve falar, e em que campo?
– Sugiro a todos que queiram compreender de fato o que acontece hoje de não menosprezarem a teologia. Uma das coisas que mais me surpreenderam, quando comecei a trabalhar com o problema da oikonomía, é que, imaginando encontrar nas bibliotecas de teologia volumes e mais volumes sobre o conceito de economia, pelo contrário, nada ou quase nada encontrei. É necessário ler com fadiga no interior das monografias sobre cada um dos autores para achar alguma análise sobre o assunto. É incrível, mas não existe nenhum trabalho de fato global sobre este conceito. Assim como o fiz em Stato di eccezione, parafraseando12 a frase de Alberico Gentile, provocando os juristas a enfrentarem este instituto jurídico a partir do seu próprio ponto de vista, convidaria atualmente os teólogos a fazerem o mesmo, enfrentando como teólogos tal problema, cuja remoção teve conseqüências nefastas seja na teologia seja na política.
Entrevista concedida a Gianluca Sacco, publicada em: Rivista online, Scuola superiore dell’economia e delle finanze, anno I, n.6/7, Giugno-Luglio 2004, 07 pp. –http://rivista.ssef.it/site.php?page=stampa&idpagestampa, acessado em 24/07/2004.
Tradução portuguesa de Selvino José Assmann. 2005.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/734/10790

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