O que você precisa saber antes de falar que a esquerda é totalitária

Bem diferente do que diz o discurso conservador, a consolidação da democracia no Ocidente como conhecemos hoje só foi possível devido às demandas da esquerda.

Eduardo Migowski

Em 2014, 0 Brasil estava vivendo uma eleição polarizada, a temperatura política estava acima do habitual. Reflexo da acirrada corrida presidencial e efeito das manifestações políticas do ano anterior. Parecia que não havia meio termo, as eleições eram tratadas como o momento decisivo para os rumos que o país tomaria nos próximos anos.

Porém, a polarização era aparente. Nem todos concordavam com aquelas ideias. Ou melhor, nem todos viam tanto valor assim nas eleições que se aproximavam. Algumas semanas antes do pleito, enquanto eu andava pelo centro do Rio de Janeiro, reparei, no canto de uma das inúmeras paredes que dominam a paisagem urbana, em uma pichação. A mensagem era instigante: “se o voto mudasse alguma coisa, ele seria proibido”. Essa mensagem ficou gravada na minha memória.

Uma maneira simples de resolver essa questão seria recorrer a uma reposta fácil: “o voto não é proibido porque ele é um direito conquistado após anos de muita luta”. Não estaria dizendo nenhuma mentira. Mas permaneceria uma dúvida: se o poder transformador do voto fosse tão evidente, como às vezes gostamos de pensar, por que muitos o rejeitam depois de décadas vivendo sob uma democracia?

O problema é a democracia representativa, muitos diriam. Elegemos representantes que não nos representam. Essa afirmação também é, em grande medida, verdadeira, mas é preciso ir além dela. Seria possível outra forma de democracia?

Resumindo um pouco essa questão, a democracia representativa é uma invenção liberal. Enquanto a democracia direta é uma bandeira histórica do socialismo. Na prática, porém, essa separação não é tão nítida. Como veremos, com o fim das monarquias, os liberais precisavam do voto como forma de legitimação, porém ele sempre foi um fantasma, que precisava ser dosado. É interessante destacar que, mesmo sendo relacionado ao liberalismo, os governos que adotaram o voto masculino universal no século XIX eram todos de esquerda. A ampliação dos direitos políticos também era uma demanda dos socialistas.

Por isso, eu gostaria de propor outra divisão. Ao invés de falarmos em democracia direta ou representativa, seria mais proveitoso pensarmos nos conflitos entre a democracia formal e a real.
As contradições entre o discurso político e a experiência histórica será o fio condutor desse texto. A ideia é que, ao final, o leitor perceba as dificuldade de implementar um sistema que busca unir poder e justiça. Por outro lado, não custa lembrar, os maiores avanços sociais foram conquistados sob esse sistema. Enfim, a democracia apresenta muitos problemas. Por isso, ela precisa ser constantemente repensada e renovada. Mas, antes, precisamos entendê-la.

A Democracia Representativa no Pensamento Político

Democracia na Antiga Grécia

O que é democracia? A definição mais antiga para esse conceito é a do filósofo grego Aristóteles (livro três da Política), em que o pensador define a democracia como sendo o governo de todos os cidadãos. Percebam um detalhe: todos os cidadãos não quer dizer todas as pessoas. Para entender o alcance de uma determinada constituição é preciso, em primeiro lugar, olhar quem ela considera cidadão e quais grupos são excluídos da cidadania.

No livro sexto da Política aparece a seguinte passagem: “o princípio fundamental do governo democrático é a liberdade; a liberdade, diz-se é o objetivo da democracia”. Mas, como em política nada é simples, Aristóteles destaca um problema que estará presente em praticamente todas as discussões filosóficas sobre o sistema democrático: por se basear na soberania popular, e normalmente os pobres são a maioria, a democracia é a única forma de governo em que o poder está nas mãos dos menos afortunados.

Partindo dessa conclusão, Aristóteles coloca a seguinte questão: como seria possível evitar que tal sistema político se transformasse numa ditadura dos pobres ou numa ditadura da maioria? Para o filósofo, a solução seria o fim das disparidades econômicas, apenas uma sociedade formada por indivíduos de classe média seria verdadeiramente democrática.

No final do século XVIII, com a crise das monarquias absolutistas, a democracia volta a ocupar a mente dos pensadores políticos. Na monumental Enciclopédia – escrita entre 1751 e 1772 e organizada pelos filósofos iluministas Denis Diderot e Jean Le Rond D’Alembert – a perigosa tarefa de definir essa forma de governo ficou a cargo do também filósofo Luis de Jaucourt. Segundo Jaucourt, a democracia seria o sistema de governo cuja soberania estaria com o povo. É preciso ter cuidado, lembra o filósofo, para não confundir povo com indivíduo. O povo seria soberano para eleger assembleias com poderes deliberativos. O indivíduo, num sistema democrático, seria ao mesmo tempo soberano e súdito. “É soberano pelo sufrágio, que é a sua vontade, e súdito enquanto membro de uma assembleia revestida de poder soberano” (Jaucourt, Enciclopédia). O Barão de Montesquieu, no sempre citado e pouco lido Espírito das Leis, definiu a democracia de forma idêntica: “O povo na democracia é, sob muitos aspectos, o monarca; sob outros, súdito”.

Se, no mundo antigo, os pensamento político valorizava a participação direta do cidadão; no iluminismo, as noções de representação e de Vontade geral ganham centralidade. Vontade geral, tal como definido por Jean Jaques Rousseau, não é sinônimo de vontade da maioria. A soma das vontades é a mera expressão dos interesses particulares, lembra o filósofo. A Vontade geral, por outro lado, distingui-se pelo caráter ético, por colocar o interesse coletivo acima das aspirações individuais. Apesar de Rousseau defender a democracia direta, a ser realizada por meio de assembleias populares, esse conceito se encaixa perfeitamente com a noção de representação.

Rousseau era basicamente um teórico, seu pensamento é muito útil para as discussões abstratas, mas, na hora de organizar um governo, muitas perguntas ficariam sem respostas. Ora, se a Vontade geral não é o resultado da soma dos interesses particulares, como seria possível extrair, dessa intrincada rede, o bem comum? A reposta, com a Revolução Americana, viria da representação. Seriam os delegados do povo os responsáveis por traduzir os interesses particulares em Vontade geral.

Há, contudo, um fator extremamente importante, lembrado por Aristóteles, mas que foi ignorado pela maioria dos iluministas (nesse caso Rousseau é uma das exceções): as diferenças econômicas. A Revolução Francesa, por exemplo, foi impulsionada pelo terceiro estado, que era uma definição vaga e abarcava grupos com interesses díspares. No caso americano havia maior homogeneidade entre os revoltados, porém, a maioria deles era composta de senhores de escravos. O que tornou a Revolução um tanto quanto paradoxal.

Um dos motivos que permitiram a eclosão dessas revoluções foi a assimetria entre o poder econômico e o poder político. Explico: na França, a burguesia estava enriquecendo e os nobres decaindo. Porém, os privilégios políticos impediam a ascensão política desses “novos ricos”. No momento em que a Monarquia francesa tornou-se insolvente e incapaz de se reformar, o liberalismo emerge com arma teórica contra a nobreza. Porém, era uma arma que precisava ser usada com cautela, localizada, pois a redistribuição do poder poderia ser vertida numa redistribuição de riqueza.

O mesmo aconteceu com a Revolução Americana. Senhores de escravos entraram numa guerra pelo direito de participar dos destinos coletivos. Por isso formaram um país independente. Mais uma vez, o liberalismo foi a arma teórica contra aquele condição. Porém, assim como na França, ele precisaria ser dosado para não interferir na ordem interna. Abaixo essas duas revoluções serão explicitadas.

A Democracia Representativa e As Revoluções Liberais

The Constitutional Convention (1787)
“Cena da assinatura da Constituição dos EUA”, de Howard Chandler Christy (1940).

A independência dos EUA é um caso emblemático. O preâmbulo da Constituição americana começa com a famosa frase: “Nós, o povo dos Estados Unidos”. Mas era de fato o povo que estava reunido na Convenção que formulou a Carta Magna? Na verdade, a Constituição foi decidida em reuniões fechadas, que contaram com a participação de apenas 55 homens, a maioria proprietário de escravos.

A legitimidade da nova arquitetura política teria que ser conquistada pelas eleições. Por isso, o esforço de homens como James Madison e Alexander Hamilton em escrever os famosos Cadernos Federalistas. Porém, qual seria o nível efetivo de participação política do cidadão? A equação era complexa e arriscada: se os direitos políticos fossem limitados, não haveria legitimidade; caso eles fossem estendidos em demasia, a posição dos Autores (como Robert Dahl chama os formuladores da Constituição) poderia ser questionada.

Nos Cadernos Federalistas, James Madison apresentou a solução para aquilo que o Autor chamava de “violência facciosa dos governos populares”. Segundo Madison, para que não fosse formada uma “facção popular” capaz de ditar os rumos da política, seria necessário apostar em diferentes fontes de identificação dos grupos sociais: raça, gênero, nacionalidade, etnia, religião, estado de origem etc. Porém, ele adverte: “as fontes de identificação de grupos são infinitamente variáveis; a mais potente e consistente delas, porém, está nas desiguais divisões de propriedade”.
Como podemos ver, Madison aborda exatamente a mesma questão levantada por Aristóteles: como equilibrar interesses diametralmente opostos numa sociedade desigual? Porém, a resposta do founding father é bem diferente: se para o grego a democracia deveria passar necessariamente pelo achatamento dos extremos; para o americano, a democracia deveria ser contida, para evitar que o “interesse da maioria” “prejudicasse o interesse geral”.

No Caderno Federalista número 63, contudo, Madison voltou atrás. Até mesmo uma república estendida, com interesses fragmentados, parecia muito perigosa. A solução seria a democracia representativa, que separasse a população do centro de decisões e impedisse o “despotismo eletivo”.

Como lembrou o cientista político Luis Felipe Miguel, o sistema representativo encerra uma contradição básica: a população, nesse modelo, está ao mesmo tempo presente e ausente do centro de decisões. Luis Felipe Miguel cita um texto magistral do filósofo francês Michel Foucault, sobre o quadro de René Magritte (“Isto não é um cachimbo”), em que o pintor brinca com as fronteiras entre realidade e representação. Ora, no sistema representativo, o povo está presente por meio dos seus representantes, mas essa presença é também uma ausência na medida em que este não se encontra fisicamente no centro político. E é nesse paradoxo, nesse jogo entre representação e realidade, entre presença e ausência, que acontece o embate entre a Vontade geral e o desejo particular.

Nos EUA, coube aos Autores decidir quem estaria presente e decidiria diretamente aquilo que seria a Vontade geral. Tal decisão ficou muito aquém do mínimo que poderíamos chamar de democracia.

A função de definir os critérios da cidadania política ficou a cargo dos estados e, até nos mais liberais, as mulheres e os negros foram excluídos. Em muitos estados também foi estabelecido uma renda mínima para que o indivíduo pudesse ser considerado eleitor. Mesmo restringindo o número de eleitores, o voto só tinha efeito para a composição da câmara dos deputados. Os senadores eram escolhidos pelas assembleias legislativas estaduais e serviam como um anteparo a uma possível radicalização da câmara baixa. O poder executivo também foi isolado da “tirania popular”, para isso, foi criado o famoso colégio eleitoral, formado por um seleto grupo de eleitores que teriam a função de escolher o presidente. Segundo Mason, representante do estado da Virgínia, deixar o povo inculto escolher o presidente era como “pedir um cego que escolhesse cores”. (citado em Marcelo Novaes, Grande Experimento)

A experiência da Revolução Francesa não foi muito diferente. A monarquia absolutista era incapaz promover as reforma administrativa necessária para modernizar um Estado obsoleto. O desenvolvimento comercial havia mudado a composição do poder econômico, porém este não foi seguido pela redistribuição do poder político. Para piorar, o envolvimento francês na guerra de independência americana provocou um sério problema fiscal.

Enfraquecido, o monarca convocou a Assembleia dos Estados Gerais para discutir uma saída para o impasse. Segundo o historiador Eric Hobsbawm, essa foi a brecha decisiva para a eclosão da Revolução. Como o primeiro e o segundo estados (Clero e Nobreza) tinham maioria na Assembleia, não haveria via legal para a aprovação das reformas. Um erro de cálculo que trouxe sérias consequências.

As mudanças eram inexoráveis. A França passava por uma séria crise humanitária; a má safra agrícola, a opressão fundiária sobre camponeses – grande parte em regime de servidão – e o inverno rigoroso haviam causado uma epidemia de fome. Os descontentamentos eram generalizados. Desigualdade extremada e tributação profundamente regressiva. Logo as disputadas políticas se transformariam em guerra civil.

Diante da pressão, a nobreza cedeu. A Assembleia Geral virou Assembleia Constituinte e esta, em 26 de agosto de 1789, publicou a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que, na prática, coloca fim ao Antigo Regime. Porém, como lembrou Hobsbawm: a Declaração “é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios dos nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”.

Os direitos civis haviam sido assegurados, mas não os direitos políticos. Todos os franceses seriam considerados cidadãos, mas nem todos os cidadãos teriam direito ao voto. Os cidadãos seriam divididos em ativos (que teriam direito à participação política) e passivos (estes deveriam ficar longo dos assuntos públicos).

A Revolução poderia acabar nesse momento, o projeto liberal estava consolidado: “o burguês clássico de 1789 (e o liberal de 1789/1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários” (Hobsbawm). Porém, em certas ocasiões, o imponderável muda o rumo dos acontecimentos. A repentina tentativa de fuga do Rei e a organização de um exército contrarrevolucionário no exterior levaram à radicalização das posições. Os embates políticos virariam uma disputa de vida ou morte, uma luta pela sobrevivência.

No dia 21 de setembro de 1972 é proclamada a Primeira República Francesa. A Assembleia virou Convenção e esta passou a ser dominada pelos Jacobinos. Nesse ponto é preciso algumas explicações. Os conceitos de direita e esquerda surgem nas discussões a respeito da soberania política. Aqueles que sentavam à esquerda defendiam que a soberania vinha do povo e tinham Rousseau como inspiração filosófica, sendo o Rei um mero delegado dessa Vontade geral. A direita, por outro lado, passou a se identificar, naquele momento, com aqueles que queriam a manutenção da ordem e do status quo, ou seja, queriam colocar fim à Revolução.

Durante a Convenção, a esquerda venceu o primeiro embate e colocou em prática um projeto alternativo ao que estava sendo esboçado até então. Uma nova Constituição foi escrita, promovendo o sufrágio universal masculino. O novo Código Civil instituiu a distribuição igualitária das heranças entre irmãos e irmãs, abolindo a primogenitura. A insurreição e o trabalho passaram a fazer partes dos direitos individuais e a escravidão foi abolida. A busca da felicidade, princípio básico da Declaração de Independência americana, passou, na nova Constituição Jacobina, a ser direito coletivo (não apenas individual) e um dever do governo. O processo de cercamento do campo, que havia sido iniciado, visando uma transformação capitalista da agricultura, foi freado e o camponês teve seu acesso à terra facilitado. Portanto, o primeiro documento humano a promover os direitos civis, políticos e sociais universais (masculino) foi resultado de uma coalizão entre trabalhadores pobres (sansculottes) e os representantes políticos da esquerda.

Os conservadores gostam de destacar o Terror revolucionário como a prova da tirania do projeto de esquerda. Na verdade, o terror existiu, mas foi o resultado da radicalização política numa sociedade acostumada com a violência. Os pobres viviam sob um constante terror econômico e social no período imediantamente anterior à revolução. O agrônomo e estatístico inglês Arthur Young percorreu a França nos anos 1787-88 e relatou, na sua extensa compilação de seu diário chamada “Travels in France” (no qual revela uma mentalidade aristocrática de desprezo aos pobres), relatou a miserabilidade e inanição que vigorava no rural francês e estimou que mais de 30% da população do país vivia na miséria

Como lembrou o historiador Michel de Vovelle, revoluções são feitas de luzes e sombras. Nesse caso, as luzes eram o ideal Jacobino de promover a igualdade, a justiça e a virtude. Porém, também havia sombras e, para alcançar tais objetivos, os jacobinos acreditavam que os conspiradores deveriam ser eliminados. E foi justamente o Terror que levou a República Jacobina à ruína.

As necessidades da guerra civil, somadas à invasão estrangeira, obrigavam o governo a centralizar o poder, a aumentar o controle e a disciplina. As requisições de alimentos passaram a ser constantes (esse problema irá se repetir na Revolução Russa). Aos poucos o governo foi perdendo apoio popular e a oposição se reestruturando. O Terror também afastou a esquerda moderada do governo, que estava alarmada com a perseguição aos opositores. Isolado, no dia 24 de junho de 1974, a Convenção derrubou os jacobinos e a direita liberal voltou ao poder. A maioria das conquistas democráticas do período seriam revogadas.

É, com efeito, o exemplo da Revolução Francesa que irá povoar o imaginário político durante todo o século XIX. Com a derrota de Napoleão, os conservadores voltaram ao poder e a monarquia foi restaurada na França. A partir desse momento os liberais passaram a ficar numa posição delicada. Precisavam do povo para impedir a volta do despotismo absolutista, mas o população estava cada vez mais organizada e unida em torno das ideias socialistas.

As revoluções então seguiam um roteiro parecido, que Eric Hobsbawm chamou “dramática dança dialética”: a classe média liberal convocava o povo para pressionar os conservadores. As massas, porém, iam além do tolerado por esses reformadores, que ficavam alarmados com a possibilidade de um governo realmente popular. Os liberais então se uniam aos conservadores e esmagavam as revoltas.

O Socialismo e a Democracia Direta

André Devambez – L'appel (1906) –
“A chamada”, de André Devambez (1906).

As revoluções do século XVIII favoreceram o desenvolvimento de um tipo de sociedade liberal, capitalista e, após a restauração, aristocrática na política. As camadas populares permaneceram excluídas. Os Direitos Universais do Homem e do Cidadão não passavam de ilusão. Como disse Alexandre Hamilton: “a verdade é que se trata de uma disputa pelo poder, não de liberdade” (citado em Robert Dahl, “A Constituição Norte Americana é Democrática?”) .

Nesse contexto, o socialismo emergiu como projeto político das classes populares que almejavam sua inclusão nos ganhos econômicos da sociedade industrial. Os socialistas não eram contra a modernização industrial, mas a viam como um processo dialético, contraditório. Ao separar o trabalhador dos meios de produção, a sociedade liberal permitia o enriquecimento de uma minoria à custa do suor da maioria. O operário era apenas uma peça na engrenagem industrial. A solução seria acabar com a dicotomia entre proprietário e empregado. Para isso, os principais recursos econômicos deveriam ser geridos pelos próprios trabalhadores, que decidiriam em assembleias locais os destinos coletivos. O ideal de democracia direta estava renascendo.
Havia, porém, uma contradição. Os socialistas viviam sob um sistema liberal capenga, que não lhes dava voz. O primeiro passo, para superação daquela realidade, viria da defesa da democracia representativa, que lhes possibilitasse o mínimo de participação política. Voltamos à velha formulação de Aristóteles. A democracia, como o governo dos menos afortunados, poderia ser um caminho possível. Aqui, porém, há uma inversão dos ideais gregos. Se para Aristóteles o fim das disparidades sociais seria o meio de se chagar a sociedade democrática, justa e virtuosa, para os socialistas, a meta seria a igualdade material e a democracia o meio para tal fim.

Noberto Bobbio destaca que a democracia é necessária ao socialismo, porém ela não é constitutiva. Ela é necessária, pois sem a participação política dos trabalhadores seria impossível alcançar as transformações profundas apregoadas pelos socialistas. Porém, ela não é constitutiva, pois a essência do socialismo é a emancipação do homem por meio da revolução das forças econômicas. Enfim, ao contrário dos gregos, no socialismo, a democracia seria um meio, não um fim. Mas nem por isso deixaria de ter a sua importância. Portanto, alargamento das bases sociais do Estado, através do sufrágio universal, seria a principal bandeira da esquerda na primeira metade do século XIX.

O projeto político socialista ficaria evidenciado em 1848, quando da proclamação da Segunda República francesa. Os socialistas recusaram o constitucionalismo liberal e assumiram as rédeas do governo, depondo o rei Luis Felipe. A primeira medida do governo popular foi a adoção do sufrágio universal masculino. Também foram editadas diversas medidas de assistência aos mais pobres e foram criadas as Oficinas Nacionais, para garantir emprego a todos os cidadãos.
Porém, mesmo valorizando os mecanismos de representação, a grande novidade do pensamento socialista foi a democracia direta. A ideia era criar meios de controle e de participação direta da população pobre nas instâncias centrais. Os trabalhadores, a partir de baixo, poderiam influenciar no centro de decisões políticas, econômicas e até nas empresas.

A Comuna de Paris, a despeito da sua efêmera existência, foi o grande laboratório do funcionamento de uma democracia socialista. Foi a partir dessa experiência que Marx propôs o conceito de “autogoverno” dos produtores. Ao contrário da democracia liberal, o autogoverno da comuna não fazia distinção entre poder executivo e poder legislativo. Se a democracia era direta, não haveria a necessidade do poder legislativo, que seria substituído pelos comitês locais de trabalhadores. O sistema eleitoral foi estendido para todos os órgãos do governo, incluindo o judiciário e as forças de segurança. Para que esse sistema pudesse funcionar, o Estado deveria ser descentralizado ao máximo. A proposta era dividi-lo em comunas, autarquias locais, que elegeriam representantes e os enviavam para uma assembleia nacional.

Há enormes semelhanças entre a democracia dos conselhos (socialista) e a defendida por Rousseau. O filósofo afirmava que a vontade individual não pode ser delegada, por isso ele era contra a representação. Os socialistas também consideravam esse tipo de democracia uma abstração. O que eles queriam, como vimos, era um sistema político em que as decisões eram de fato tomadas de baixo para cima. Iniciaria com um diálogo entre os trabalhadores relativos aos problemas locais, passando pelos comitês e chegando à assembleia nacional, local em que as medidas seriam aplicadas. Seria a mais perfeita síntese da ideia da democracia como o sistema em que o indivíduo é ao mesmo tempo soberano e súdito. Porém a democracia dos conselhos tinha um problema que ficaria evidente ao longo da Revolução Russa: a excessiva descentralização. Os revolucionários haviam se inspirado em Rousseau, mas se esqueceram de um importante ensinamento do filósofo iluminista: na política, a soma das partes não forma o todo.

A Democracia Direta e a Experiência Russa

Valentin Serov – Lenin Proclaims the Victory of the Revolution (08 November, 1917)
“Lênin proclama a vitória da Revolução Russa”, de Valentin Serov (1917).

A Comuna de Paris acabou destruída brutalmente em poucas semanas. Foi uma carnificina: cerca de 20 mil pessoas terminaram executadas. Número que superava, inclusive, os mortos durante o sempre lembrado Terror jacobino. A ferocidade da reação conservadora/liberal demonstrou o perigo que a proposta de autogestão representava na época. A derrota militar, contudo, transformou-se em vitória simbólica e o espectro do socialismo continuou assombrando a Europa.

Em 1917 estourou uma nova revolução, dessa vez na Rússia. Em fevereiro daquele ano, a secular autocracia czarista ruiu. A Revolução de Fevereiro, como o evento ficou conhecido, foi um caso peculiar. Não havia uma coordenação central, um grupo ou uma liderança que desse direção ou base ideológica aos acontecimentos. Como lembrou o historiador Daniel Aarão Reis: “eram uma concepção, uma tradição – e uma prática – que vinham abaixo sem um processo de amadurecimento de alternativas institucionais”.

A historiadora Sheila Fitzpatrick escreveu que se formou algo análogo a um vácuo de poder. Contudo, vácuo de poder não existe. Com a ruína das instituições czaristas, quem tomaria as rédeas da política? Para explicar esse movimento, Leon Trotsky propôs o conceito de Poder Dual. Segundo o revolucionário, haveria um poder da elite, liberal, representado pelo Governo Provisório; e um poder popular, agrupado em torno do Soviete de Petrogrado.

Estudos mais recentes, como o já mencionado professor Daniel Aarão Reis, mostraram que o processo foi um pouco mais complexo. Aarão questiona a noção de que haveria dois polos de poder. Para o historiador, a crise da Monarquia Russa teria favorecido às forças centrífugas, que não estariam subordinadas nem ao Soviete de Petrogrado e nem ao Governo Provisório: “o desafio era fazer dos sovietes um poder unificado. Brotando em toda a parte, tinham os freios nos dentes e exerciam sua respectiva autonomia, o que desde cedo, foi um complicador. (…) Havia ali um reconhecimento da legitimidade das instâncias centrais, mas não uma obediência automática às suas orientações. Nesse sentido, seria mais fácil falar de uma “rede” de conselhos, de uma multiplicidade de poderes, e não de uma dualidade de poderes”. Na mesma linha, Eric Hobsbawm afirma que o vácuo revolucionário havia sido preenchido por um Governo provisório impotente de um lado, e de outro “uma multidão de conselhos de base (Sovietes) brotando espontaneamente por todos os lados, como cogumelos após as chuvas”.

A desagregação do poder central não ficou restrita aos Sovietes. A aprovação da ordem de serviço número 1 determinava que as decisões nas Forças Armadas seriam tomadas por um colegiado de soldados, que teriam total liberdade de expressão. A democratização das Forças Armadas quebrava a espinha dorsal da instituição, baseada na hierarquia a na disciplina. No interior, os camponeses seguiram o mesmo caminho, conformando instancias deliberativas locais, que também não se sujeitavam ao Governo Provisório: “como o comitê do vilarejo Sotnursk lembrou às suas autoridades regionais: Nós elegemos vocês. Vocês têm que nos ouvir!” (Sarah Badcok)

Do ponto de vista institucional, a Rússia estava sendo fragmentada por estes múltiplos poderes. Mas a fratura principal era entre duas concepções diferentes de democracia: a liberal e a socialista. Nesse aspecto, a ideia de Poder Dual faz sentido. Em tese, como vimos, práticas de democracia direta podem perfeitamente coexistir com um sistema representativo. Mas na Rússia, esses modelos buscavam a hegemonia e, assim, entravam em choque. Em abril, por exemplo, Lênin passou a defender a famosa fórmula “todo poder aos Sovietes”. Na prática, isso queria dizer que as decisões seriam tomadas pelas instâncias locais e o governo seria a caixa de ressonância desses anseios. Nessa concepção de democracia, a política pluripartidária não faria sentido, pois o governo seria um executor das deliberações que viriam de baixo.

O problema é que ao mesmo tempo em que os Sovietes brotavam como cogumelos, o Governo Provisório fortalecia a democracia representativa, tirando os partidos da ilegalidade e prometendo convocar uma Assembleia Constituinte. Cedo ou tarde, haveria conflito.
Em outubro os bolcheviques finalmente chegariam ao poder e esta contradição ficou evidente. Ora, os bolcheviques era um partido político; partido é elemento constitutivo da democracia representativa. Será que depois de conquistar o poder eles o transfeririam para os Sovietes? Se essa era realmente a intenção, como seria feito? E os demais partidos, aceitariam um sistema político que os eliminaria? O que aconteceria se os comitês tivessem concepções diferentes?
As primeiras medidas adotadas pelo CCP iam na direção do fortalecimento da democracia direta. Lênin precisava ampliar as bases de sustentação política e oficializou algumas decisões que já haviam sido decididas pelos conselhos: como a jornada de trabalho de oito horas, o direito dos povos não russos à autodeterminação, aboliu as distinções civis e estabeleceu o controle operário das empresas. Por outro lado, a Assembleia Constituinte foi mantida e os outros partidos passaram a apostar nela para ampliarem sua influência.

Logo na abertura dos trabalhos da Assembleia, os Bolcheviques apresentaram a Declaração dos Direitos dos Povos Trabalhadores e Explorados, que delineava as principais características que o novo regime deveria seguir. Foi a última tentativa de conciliar os dois modelos. A maioria dos deputados, porém, rejeitou, pois feria o princípio de soberania da assembleia eleita.

A aposta de oposição na democracia liberal deu resultado. Os Sociais Revolucionários (SRs) conquistaram 267 deputados, número muito maior que as 167 cadeiras assegurada pelos Bolcheviques. Havia uma clara crise de legitimidade, proporcionada pela coexistência de dois modelos políticos distintos. Os Socialistas Revolucionários tinham a legitimidade do voto, enquanto os Bolcheviques dominavam grande parte dos Sovietes. Caso a conformação da democracia representativa tivesse continuidade, ela fatalmente iria desmontar os conselhos locais e concentrar poder. Caso os Bolcheviques quisessem adotar a fórmula “todo poder aos Sovietes”, teriam que acabar com o pluripartidarismo. Obviamente, que àquela altura, qualquer um dos caminhos escolhidos levaria a uma guerra civil.

E foi exatamente o que aconteceu. Lênin recorreu aos Sovietes e votou a dissolução da Assembleia. Eram vozes dissonantes competindo por uma soberania indefinida. A Guerra Civil tornou a descentralização política inviável e fortaleceu aqueles que defendiam soluções autoritárias dentro do partido. O pêndulo político deslizava para o outro lado. Os partidos oposicionistas foram declarados como inimigos da revolução e do povo Russo. A administração da Justiça passou para os Sovietes e, na prática, passou a ser administrada pelo governo.
Foi criado uma polícia política, a Tcheka. A economia passou a ser administrada e planejada centralmente, colocando um ponto final em qualquer possibilidade de autogestão nas fábricas. “Os Bolcheviques, de fomentadores da desagregação e da ruptura, convertiam-se, agora, em força centrípeta, campeões de um processo rápido de centralização autoritária da sociedade”. (Daniel Aarão Reis). “Foi no contexto da Guerra Civil que os bolcheviques tiveram sua primeira experiência de governo, e isso sem dúvida moldou o desenvolvimento subsequente do partido em muitos aspectos importantes. Mais de meio milhão de comunistas serviram no Exército Vermelho (…). Para o contingente que se filiou durante a Guerra Civil, o partido era uma irmandade guerreira no sentido mais literal. Os comunistas que serviam o Exército Vermelho levaram o jargão militar para a linguagem política partidária, e fizeram das túnicas e botas dos exércitos, quase que um uniforme para membros do partido nos anos 1920/30” (Sheila Fitzpatrick).

A Guerra Civil, que surgiu para solucionar o conflito entre dois modelos distintos de democracia, acabou enterrando os dois. A partir desse momento a Revolução iria se burocratizar, se afastar da soberania popular, e, com o advento do stalinismo, a Ditadura do Proletariado seria convertida numa ditadura sobre o proletário.

“Uma nova burocracia se instalou no Estado, inteiramente sob o modelo que Lenin havia instituído em 1904 para a organização do Partido. Se conforme este modelo as autoridades centrais do Partido deviam vigiar, dirigir e determinar todas as expressões de vida dos camaradas do Partido e do movimento operário em geral, a nova burocracia devia vigiar, dirigir e determinar todas as expressões de vida do conjunto da população, não só na vida do Estado mas também no processo de produção e de circulação, mesmo toda a vida social, todo pensamento e todo sentimento das massas” (em “A Ditadura do Proletariado”). (…) “Sem dúvida, liberdade de circulação e de domicílio, liberdade de escolher a sua profissão e o seu serviço são liberdades ‘liberais’, assim como a liberdade de imprensa e de reunião, etc. Mas isto não quer dizer que os operários renunciem a essas liberdades, mas que elas não lhes são suficientes, que eles pedem ainda liberdades maiores à sua comunidade socialista”.

Considerações Finais

Como dito, ainda na introdução desse texto, não devemos pensar a democracia como um modelo pronto, a ser adotado de modo direto ou representativo. Mas como práticas que procuram trazer para a esfera prática aquilo que foi idealizado no plano das ideias. Apesar da participação direta do cidadão ser preferível à representação, uma democracia puramente direta é impossível na atualidade (até nos colégios de ensino médio, para ouvir os alunos, a diretora faz eleições de representantes de turma). A dimensão dos territórios nacionais, a população, a complexidade das questões políticas e a correria do dia a dia inviabilizam a participação direta. O que, obviamente, não impede que práticas de democracia direta sejam adotadas num sistema representativo (sobretudo no nível municipal). A meu ver, o grande desafio é fazer com que o sistema representativo realmente represente a sociedade.

Para explicar essa parte final, gostaria de fazer alguns comentários sobre o voto feminino. Com certeza as leitoras desse texto devem ter percebido que em nenhum momento as mulheres foram mencionadas. Durante o século XIX, nem mesmos os governos mais radicais não iam além do voto universal masculino. As mulheres eram sempre excluídas. Esse fato é interessante para percebermos os impasses da democracia atual.

Acreditava-se que, no momento em que o trabalhador tivesse direito ao voto, ele seria maioria no legislativo. A lógica era simples: o trabalhador votará num igual, como ele é maioria na sociedade, será maioria no parlamento. O mesmo valeria para as mulheres. Porém, a política é contraditória e nem sempre prevalece a lógica. A democracia, como governo dos pobres, não é algo tão preciso como imaginava Aristóteles. Ou, nas palavras do cientista político Luis Felipe Miguel: “o acesso à franquia eleitoral é uma condição necessária, mas nem de longe suficiente”. Por quê? Por que mulheres não elegem mulheres em quantidades próximas a representação desse gênero na sociedade?

Uma das repostas a essa pergunta pode ser buscada lembrando os ensinamentos de James Madison que, no século XVIII, já dizia que os elementos identitários são múltiplos. Uma mulher pode definir a si mesma, em primeiro lugar, como uma religiosa. E votar num candidato que represente essa característica. Mas isso não responder tudo, pois tal afirmação também valeria para os homens e estes não estão sub-representados.

Talvez um caminho para entender essa aparente contradição estaria no que Pierre Bourdieu chamou de efeito doxa. As representações sociais constrangem o comportamento humano e acabam por influenciar na conformação de uma realidade social. Em termos mais simples: mulheres aprendem desde cedo que o espaço da política não as pertencem. Vale destacar que os interesses também são construções sociais e a ausência do gênero feminino na política reforça essas representações. Assim, elas acabam por se afastar da esfera pública. O resultado é um congresso composto essencialmente por homens brancos e ricos.

As contradições do sistema democrático, portanto, devem ser entendidas de forma ampliada, pois elas se relacionam com a estrutura social desigual. As desigualdades – sejam elas materiais ou simbólicas – bloqueiam a democracia e, sem o aprofundamento democrático, tais mazelas dificilmente serão superadas, formando um paradoxo difícil de ser superado. Essa é, certamente, a grande barreira que precisa ser vencida no século XXI.

A democracia representativa, na feliz expressão de Luis Felipe Miguel, é um território em permanente disputa, um jogo de ausência e presença. Tornar as demandas populares mais presentes que ausentes no centro de decisões é uma tarefa sempre inacabada que deve nortear o pensamento político. O horizonte moral da política é a busca pela justiça e é impossível aproximar o poder e justiça sem a soberania popular.

Referências

• Aristóteles – Política
• Diderot e Dalamberto – Enciclopédia (volume 04)
• James Madison, Alexander Hamilton e John Jay – O Federalista
• Jean Jaques Rousseau – O Contrato Social
• Montesquieu – O Espírito das Leis
• Marcelo Novaes – O Grande Experimento
• Robert Dahl – A Constituição Americana é Democrática?
• Jonh Dunn – A História da Democracia
• Simone Fabre – O Que É Democracia?
• Leo Strauss e Joseph Cropsey – História da Filosofia Política
• Norberto Bobbio – Dicionário de Política
• Eric Hobsbawm – Era das Revoluções
• Eric Hobsbawm – Era dos Extremos
• Luis Felipe Miguel – Democracia e Representação
• John Merriman – A Comuna de Paris
• Sheila Fitzpatrick – A Revolução Russa
• Daniel Aarão Reis – Manifestos Vermelhos

Fonte

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