A esquerda tem é que desatinar

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A cultura é a ferramenta que o ser humano usa para determinar
aquilo que vale à pena ~preservar~ (a Amazônia, a catedral de Florença) e
aquilo que vale à pena ~repetidamente criar~ (grandes amores, grandes
livros, novas terapias, novas obras de arte).
2
O capitalismo
opera de modo a tornar sem efeito na cultura um seu componente ético
(presente nela desde pelo menos a época de Sócrates) que sustenta que é o
bem-estar da sociedade a indicar ao indivíduo aquilo que deve ser
preservado e repetido.
3
No capitalismo o indivíduo é
adestrado a perder de vista o social e a crer que existe uma única raça
de coisas que vale à pena ser preservada e repetidamente criada: os privilégios de consumo de cada um.
Isso ao custo do que estiver no caminho: a Amazônia, a catedral de
Florença, os ribeirinhos do Espírito Santo, a justiça, o futuro
habitável do planeta.
4
Seu dogma é “nenhum privilégio a
menos” – mesmo quando a manutenção de privilégios exige a eliminação de
direitos dos menos privilegiados. Mesmo, na verdade, quando exige a
eliminação de direitos da própria classe privilegiada.
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Forçado a escolher entre direitos ou privilégios como a coisa a ser
preservada e ampliada, o indivíduo sob o totalitarismo de mercado vai no
fim escolher privilégios em detrimento de direitos, e os privilégios
que vai escolher preservar e ampliar serão os seus de consumir.
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Chama-se sociedade de consumo não é por outro motivo: sua dinâmica é
aquela do usuário de entorpecentes, pronto a penhorar cada aspecto da
realidade ao seu redor, até mesmo sua casa e suas relações, de modo a
não interromper o fornecimento.
7
A esquerda como alternativa
ao capitalismo não tem sido capaz de propor uma narrativa popular sobre o
que vale a pena ser preservado e ampliado além (ou em vez) da
capacidade de consumir. Consumir *menos* faz parte da narrativa da
esquerda, mas não consumir *uma outra coisa*.
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Primeiro
porque somos nós mesmos viciados no consumo. Como tudo no presente
regime, o espaço da esquerda é distorcido pela força de gravidade
universal do “nenhum privilégio a menos”. Existirá uma experiência rica e
sustentável fora das dinâmicas do mercado, mas reside num nosso ponto
cego – pelo que nos sentimos incapazes de propô-la 1.
9
Outra parte do problema é a obsessão da esquerda em apelar para o
intelecto, quando a própria direita desistiu de fingir seu apego à
lógica e passou a articular e recompensar apenas afetos, criando
realidades alternativas quase borgianas: narrativas fabricadas sem
qualquer compromisso com os fatos – mas que servem ao mesmo tempo os
seus interesses e se mostram emocionalmente satisfatórias para os seus
eleitores.
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Se essas grandes narrativas orientadoras
transformam e conduzem a realidade, a resistência ao totalitarismo de
mercado deve aprender a criá-las e lançá-las ela mesma mundo afora.
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Nisso considero fundamental que a esquerda abandone o intelecto como
alvo único ou prioritário dos seus apelos. Como já vimos, rolou por um
instante a impressão de que o mundo seria salvo pelo acesso universal aos fatos, tipo uma internet – mas não bastou e não vai bastar.
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Não compartilho por exemplo do entusiasmo dessa galera que projeta
erguer uma rede de produção de conteúdo popular via YouTube, conteúdo
que estabeleça diante da geral os fundamentos de um debate civilizado,
coisas tipo que a terra não é plana e que o nazismo não é de esquerda.
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Make your own kind of music,
mas tenho por mim que o mais embasado debunking e a mais articulada
série primeiros passos não têm como produzir um arranhão numa realidade
sustentada através de mentiras – sendo a mentira a sorte de recurso
particularmente renovável que é.
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A presente crise de
mediação quer dizer que as pessoas vão continuar a relutar em dar
crédito a qualquer leitura tradicional da realidade: seja científica,
seja filosófica, seja o raio. Foram levadas a crer que as leituras
tradicionais já foram suficientemente representadas na cultura, e que é hora de ouvir as vozes da dissensão.
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Defender a democracia e condenar a homofobia no YouTube só vai produzir
diante desse público maior evidência de que as leituras tradicionais,
“politicamente corretas” da realidade têm exposição excessiva na
cultura, e que as vozes antissistema estão sendo silenciadas.
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O cabra não ignora que a biblioteca do bairro, a internet e o professor
da escola vão lhe dizer cada um que a terra não é plana. Sabe dizer
aqueles nas suas relações que vão lhe dizer que é verdade o aquecimento
global. No YouTube ele respeita a mensagem, não o meio.
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A autoridade é da mensagem de dissensão, porque o sujeito vai acreditar em qualquer coisa que sustente a sua versão daquilo que no mundo deve ser preservado e ampliado: os seus privilégios de consumo.
18
Cabe à esquerda levantar narrativas mais ambiciosas, populares,
festivas e atraentes, sobre aquilo que nos espaços humanos merece ser
preservado e ampliado.
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A esquerda não deve ter medo de não parecer científica, não deve ter medo de não se ater aos fatos.
A esquerda tem é que desatinar.
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Fato é que de todos os aspectos da cultura, a ciência é particularmente
desprovida de ferramentas para indicar com clareza aquilo na
experiência humana que vale à pena ser preservado e repetidamente
criado. A poesia, a filosofia, a devoção e a arte podem fazê-lo com
maior graça e gravidade.
21
Pode ser hora de deixar por
completo de criticar ou de falar do capitalismo. Pode ser hora de
começar a criticá-lo ignorando-o por completo e passando a contar
histórias sobre alternativas superiores – histórias que pertençam ao
domínio do passado, do presente ou do imaginado, porque não faz
diferença. Todas as histórias falam do ser humano e ao ser humano falam.
22
Pode ser necessário deixar de pensar que o inelegível chegou ao poder
através de fake news. Ele chegou ao poder através de histórias, contando
uma história atrás da outra como faria João Grilo, e as histórias que
contou foram melhores e mais interessantes do que as que contou a
esquerda.
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Que não correspondiam aos fatos chega a ser
secundário. A esquerda também tem histórias para contar sobre um mundo
possível que não pertence (ainda?) à realidade objetiva. O mundo justo e
ajustado pelo qual ansiamos precisa ser contado de mil formas, e que
ele existe só nas nossas aspirações não é mentira.
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Lembrando que “os humildes herdarão a Terra” é fake news até deixar de ser.
25
Lembrando que “liberdade, igualdade e fraternidade” é fake news até deixar de ser.
26
Lembrando que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” é fake news até deixar de ser.
27
Lembrando que o discurso “I have a dream” de Martin Luther King Jr é fake news até deixar de ser.
28
Lembrando que a Terra unida, federada, tolerante e comunista de Jornada nas Estrelas é fake news até deixar de ser.
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Essas descrições de mundo possíveis e desejáveis não se fundamentaram
exclusivamente na realidade objetiva para iluminar aquilo que vale à
pena preservar e repetir. A ciência é um aspecto fundamental da cultura,
mas a verdade da justiça social é sempre inventada, e precisa ser
perpetuamente articulada como uma utopia nova – até deixar de ser.
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Os e/leitores do inelegível decidiram que diante da narrativa que ele
oferecia valia à pena ajustar a realidade à ficção, e não o contrário.
Quem na esquerda está pronto a levantar uma história que leve o e/leitor
a decidir que vale à pena ajustar a realidade à sua narrativa?
.
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A esquerda se dedica muito estabanadamente a demonstrar a verdade dos fatos
– que é fato o aquecimento global, a eficácia das vacinas, que não é
fato terra plana, que não é fato o kit gay. A esquerda se mostra
inteiramente despreparada para defender a verdade da sua posição – independente dos fatos.
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A esquerda caiu no logro da direita, que desde a década de 1970 faz de
conta que joga o jogo político pelas regras da sensatez e dos números.
Querendo vestir-se de respeitabilidade, a esquerda abandonou as suas
raízes humanistas e armou-se quase que exclusivamente de ciência.
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Agora que a direita pisoteia a sensatez e os fatos e apela diretamente
aos afetos, a esquerda se vê ultrapassada e sem tração, argumentando com
lucidez elitizante numa disputa que é de afetos populares.
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Quando alguém nega o aquecimento global ou defende a terra plana este.
é. um. ato. político. Diz respeito aos afetos. A ciência não tem de se
sentir ofendida e não tem obrigação de se defender porque não foi sequer
nomeada.
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“Mas a ciência demonstra o aquecimento global
veja os números” tem a mesma precisa eficácia de dizer “mas Deus é amor
leia o versículo”. Defender a ciência é como defender Deus: é inútil e
contraproducente, e não é da índole nem de um nem do outro.
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Funcionaria se o ser humano fosse um ser racional, e que não é racional foi inclusive demonstrado cientificamente.
Não cabe à esquerda, logo à esquerda que exige da matéria humana mundos e justiças sem precedentes, criar um ser humano que não existe, conduzido pela razão.
Notas
1. | ↑ | O Movimento dos Sem Terra ele sim, proporciona uma grande, festiva e potente narrativa possível, e por isso merece a nossa atenção – e tem merecido a atenção do regime do inelegível, que deve procurar criminalizá-lo precisamente porque representa tão formidavelmente uma alternativa (e portanto uma crítica) à narrativa totalitária do regime. |

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