#todoserhumanomerepresenta: a esquerda e a tradição cristã

§ Antes de ser questão política, a ideia de que ninguém é melhor do que ninguém dizia respeito à identidade cristã §
Somos todos culpados de tudo.
Dimitri Karamazov, em Os irmãos Karamazov de Dostoiévski
A diferença entre esquerda e direita, obviamente, é que os partidários da esquerda podem dizer todo ser humano me representa e insistem em fazê-lo.
A direita prefere evitar qualquer identificação com a esquerda, mas para ser de esquerda é preciso identificar-se até certo ponto com a direita. É preciso entender até o seu cerne as aspirações e os argumentos da direita – sentir o completo fascínio da sua tentação, por assim dizer, antes de tomar a decisão de proteger o mundo inteiro do estrago que tem feito e pode continuar a fazer.
Para Gilles Deleuze, trata-se de uma diferença de percepção: a pessoa de direita parte de si mesma para chegar até o universo do outro, a pessoa de esquerda parte do universo do outro para chegar a si mesma. Para usar o vocabulário do apóstolo Paulo, o partidário da direita é o “homem natural”, o ser humano básico absolutamente convicto da legitimidade dos seus direitos, anseios e ambições. Para ser de esquerda é necessário um passo adicional, uma literal conversão que produza o despertar de uma nova consciência e uma nova empatia – aquela do “homem de espírito”. Isso não quer dizer que para ser de esquerda é preciso ser melhor do que os outros: quer dizer o contrário. O que o homem de espírito enxerga e o homem natural não consegue enxergar é que ninguém é melhor do que ninguém.
Justamente por isso, o homem de espírito sabe que todo ser humano o representa: o homem natural fará sempre parte dele mesmo.
E se coloco a coisa em termos da tradição cristã (homem natural, conversão, homem espiritual) é para lembrar quão paradoxal é a rejeição cristã das esquerdas contemporâneas.
No ocidente, os cristãos que se creem conservadores 1 são em sua maioria de direita, e fazem questão de articulá-lo constantemente e de muitas maneiras. Nada contra, tirando o fato de que nada há de conservador nessa sua postura. Pelo menos a partir da confecção do Novo Testamento, mas consistentemente ao longo de dezenove séculos, a tradição popular cristã se alinhou à leitura de mundo e às prioridades que caras como Gilles Deleuze associam à esquerda. Mesmo para o autor bíblico sequestrado pelo conservadorismo cristão, o apóstolo Paulo, ser seguidor de Jesus foi desde o início um exigente convite para se ver o mundo a partir do universo do outro; implicava no compromisso de reformar a realidade a partir da convicção de que ninguém é melhor do que ninguém.
A veia não institucional do cristianismo, aquela sua vertente insubordinada, popular e por vezes subterrânea que ao longo da história permaneceu alinhada ao batimento cardíaco de Jesus, pende para a esquerda desde muito antes que a esquerda ganhasse esse nome.
Não estou dizendo, bem entendido, que a esquerda contemporânea precisa do cristianismo para se definir; a tradição popular cristã é que ao longo da história achou indispensável definir-se em termos que são hoje caros para a esquerda.
O fundador proletário
Os maiores abusos e muros de contenção perpetrados pela igreja formal não conseguiram calar por completo, em época nenhuma, o fascínio popular do rabino desalinhado da Galileia. A força gravitacional do Jesus dos evangelhos mostrou-se mais potente do que o buraco negro da igreja formal.
Mesmo quando não tinham acesso direto ao texto dos evangelhos, as pessoas ao longo do séculos acabaram sendo expostas à radioatividade residual da tradição igualitária de Jesus. A herança do “fundador proletário do cristianismo” (para usar a imagem de Upton Sinclair) se perpetuou através de testemunhos que operavam à margem da igreja formal: arte pictórica, música, tradições orais, poesia sacra, narrativas populares, histórias dos santos, cultura monástica, a mera sobrevivência de um veio dourado e ininterrupto de gentileza num mundo implacável.
Porque, apesar do cristianismo, o Jesus das histórias dos evangelhos foi de fato o fundador do espírito cristão, aquele que está resumido na oração #todoserhumanomerepresenta.
Há nos evangelhos esse personagem não conformista que rejeitava todo o poder e denunciava toda ferramenta de desumanização empunhada pelos homens. Jesus fez o que ninguém tinha feito, levando as minorias a sentirem-se aceitas, e no processo pinçou o ser humano de um mundo bidimensional e inventou um ser humano mergulhado em perspectiva. Essa nova criação é o homem que nasceu de novo, aquele que habita um mundo novo porque enxerga o mundo com outros olhos e com os olhos do outro.
Ao contrário de deuses mais criteriosos ou menos desiludidos, o Deus de Jesus escolhe se definir pelo que dá a todos. Ele se afirma santo porque “faz nascer o sol maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”, não pela discriminação que poderia fazer entre uma categoria e outra. Jesus decide ele mesmo que o único modo de se identificar com um Deus dessa estirpe é identificar-se pessoalmente com todos os homens. Por isso ele dá a si mesmo o nome de “Filho do Homem” (expressão que em sua cultura quer dizer mais ou menos “ser humano básico”) – não somente por querer representar em seu melhor todos os homens, mas por entender todos os homens no seu pior.
Jesus foi o primeiro a tornar visível a bandeira #todoserhumanomerepresenta. Convicto da afinidade essencial entre as gentes, ele dava preferência a pobres e marginais, mas não negava sua companhia a religiosos e estelionatários, gente que em sua mesquinhez (e devido a ela) não desconhecia a exclusão.
Porque todo ser humano me representa, a quem pedir a minha túnica devo dar também a capa, por entender a ganância do ganancioso, por ter naquela mesquinhez efetiva a minha oculta denunciada. Por que todo ser humano nos representa, os fariseus ousam poupar a mulher adúltera, porque se o critério for uma ficha limpa ninguém pode atirar a primeira pedra; Jesus os dobra a reconhecer que em seu pior momento a mulher condenável os representa. Por que todo ser humano nos representa, Jesus traz à atenção de Deus que os soldados que o crucificam não sabem o que estão fazendo – porque o próprio pendurado se sente representado naquela crueldade, ainda que não tenha jamais recorrido a ela; porque se soubessem o que estão fazendo, se tivessem o dom da perspectiva, os soldados seriam como Jesus e jamais recorreriam à crueldade; em outras palavras, Jesus reconhece os soldados como tendo completa afinidade com ele mesmo: embora estejam em condições diferentes, em sua humanidade eles plenamente o representam. Porque todo ser humano nos representa, o bondoso, ternurista e inclusivo rabi da Galileia pode incrivelmente nos representar, e podemos almejar representá-lo.
A interface divina
A espiritualidade oriental explica o universo pela resposta da identidade. A divindade, se existe, é tudo e todos: está no homem como na formiga como na gota d’água e é indistinguível deles.
Na religiosidade judaico-cristã não há essa identidade: Deus e o universo não são a mesma coisa. Para cobrir a distância, Deus requer uma interface para experimentar o universo, e essa interface é o homem.
O homem, por sua vez, também precisa de uma interface para experimentar Deus. No Antigo Testamento, essa interface é o universo, a Lei ou a criação. A novidade do Novo Testamento, a mensagem do Filho do Homem, está em sugerir que a interface com a qual o homem experimenta Deus é o próprio ser humano: eu e o outro, o cara que está jogado na estrada e o cara que está passando, o próximo como a si mesmo.
Estava lançada a noção cristã da afinidade essencial entre os seres humanos, um tema a que Jesus volta sempre. Cada homem representa todos os homens, por isso todos merecem a condenação e por isso todos podem ser perdoados. Cada homem representa todos os homens, por isso todos os sistemas de exclusão devem ser anulados e denunciados: não faz sentido rejeitar como não faz prestar deferência.
É por isso que, para Jesus, não há figura de linguagem em dizer que quando damos a um estranho um copo d’água é ele, Jesus, quem se beneficia desse gesto; se fizeram a alguém, “é a mim que o fizeram”. A mesma lógica está por trás da disciplina de “amar o próximo como a si mesmo” e “quem não tem pecado atire a primeira pedra.”
Em todos os casos a reviravolta não é de identidade, mas de afinidade: é entender que tal pessoa, tal postura, todo ato de maldade e toda aspiração de virtude – tudo que é humano – me representa. Nascer de novo é deixar de viver ignorando essa afinidade essencial entre as pessoas.
Na teologia, a noção da afinidade entre os seres humanos produziu doutrina da expiação, na qual ela é ingrediente essencial da própria salvação: é porque cada homem representa todos os homens que é justo que Jesus tenha morrido (e reassumido posse da vida) em nome de todos.
Porém no Novo Testamento a nova ideia é tomada como tendo mais implicações para as relações entre os homens do que para o destino eterno dos indivíduos. Há na verdade poucos indícios que os autores do Novo Testamento postulassem uma salvação que não fosse relacional.
Para o apóstolo Paulo, a revelação de Jesus muda toda dinâmica entre as pessoas, em que nela “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”.
Para falar do que existia antes, Paulo dá ao “homem natural” um nome mais revelador: homem carnal. O homem carnal não é perverso; ele é na verdade muito leal, mas leal à sua carne – entendida como sua tribo, sua família, seus favoritos, suas prioridades, seus compatriotas, sua panela, seus heróis pessoais. Ele é o homem de direita de Deleuze, que parte de si mesmo (sua carne) para julgar o universo do outro (os de fora, os que não são da família, os que tem outras prioridades e costumes, os que não estão sob a proteção da sua tribo).
O homem inventado por Jesus, explica Paulo, abandonou todo o condicionamento tribal da carne e é por isso espiritual; é o indivíduo que abandonou todas as categorias e portanto todo o julgamento. O homem de espírito não divide o mundo entre os que são os da sua carne/tribo e os que são de fora. O homem de espírito não tem favoritos ; quem tem favoritos está na carne (1 Coríntios 3:4). O homem de espírito conhece a afinidade essencial entre os seres humanos, por isso não ignora que quando condena quem quer que seja torna-se culpado precisamente daquilo que está condenando (Romanos 2:1).
O reino de Deus esboçado por Jesus é o mundo político em que cada homem reconhece no próximo a interface divina. Melhor: é o mundo em que se há um Deus ele só pode ser experimentado pela mediação pacífica de (e entre) seres humanos, pela relações livres e inclusivas entre “filhos dos homens”. O reino de Deus é o domínio em que Deus não precisa reinar, porque reina em regime extremo a hospitalidade humana. É o mundo do Sermão do Monte, cuja rigorosa oração é #todoserhumanomerepresenta. Ele é também chamado de reino do céu, porque postula a transferência do céu ideal para a terra real (“venha o teu reino”, em vez de “leve-nos até o céu”). É o mundo em que abandonamos as categorias arbitrárias traçadas pela nossa carne/tribo em favor da afinidade postulada e reconhecida entre os seres humanos. É o mundo antiquadíssimo e sempre iminente (porque sua implantação não depende de ninguém além de mim e de você) do amor.
Quando é implantado, o reino produz em cada caso a dissolução de preconceitos e injustiças ancestrais, e representa pela mesma razão grave ameaça aos antigos privilégios e sistemas de dominação.
O reino do céu é o mundo da revolução.
A revolução transversal
Como ninguém ignora, o cristianismo passou boa parte dos dois milênios que se seguiram promovendo o rigoroso oposto de tudo isso. “Todo ser humano me representa” passou a ser depressa “sou melhor do que você, e magnânimo o bastante para querer que você seja exatamente como eu: converta-se à minha imagem ou vá para o inferno”.
Se todo ser humano nos representa, os cristãos passaram a representar a nossa face mais perniciosa: gente convicta das suas próprias virtudes e boas intenções mas inteiramente pronta a promover a exclusão pela guerra, pelo proselitismo, pela arrogância, pela exploração, pelo julgamento, pela escravidão, pela condescendência, pela rejeição e a sistemática eliminação do diferente.
Que o reino da gentileza não tenha sobrevivido ao poder político e institucional não deveria nos surpreender, e não teria por certo surpreendido os seus proponentes originais. Como notaram Dostoiévski e Upton Sinclair, essa reviravolta já está prevista na história das tentações de Jesus no deserto.
O espírito da graça (que é afinidade e beleza) não teria como se deixar aprisionar pela carne, que é tribal e institucional e depende de manter e exibir as estruturas de poder. Se o espírito continuaria a soprar seria nas margens, sempre nas margens, de uma cristandade tóxica, arrogante e letal. Como no tempo de Jesus, para encontrar Deus tornou-se necessário abandonar os átrios e palácios e passar a frequentar leprosos, marginais e prostitutas. O cristianismo tornou-se um sol que só ilumina quando nos recusamos a olhar diretamente para ele.
Apesar do cristianismo e, incrivelmente, no rastro dele, a noção neotestamentária da afinidade essencial entre os homens continuou a iluminar e transformar.
Na compreensão dessa afinidade consistiu a visão de São Francisco de Assis (1182-1226), e olhando para ele o mundo inteiro entendeu isso no tempo dele e até os nossos dias. Fragorosamente apaixonado pelo Jesus dos evangelhos e inteiramente imbuído de seu espírito, Francesco foi o mais formidável Filho do Homem honorário que as eras já conheceram.
Entre a nossa própria era e a de Jesus, ninguém trabalhou mais do que Francesco para promover a ideia de que o que cada homem deve ao seu próximo é um abraço de absoluto reconhecimento, de plena identificação, de compreensão e de amor. O campeão medieval do #todoserhumanomerepresenta chamava todo mundo de irmão, até mesmo o sol, até mesmo a lua e o traiçoeiro lobo de Gubbio: até mesmo a morte, porque vivia movido pela convicção de que tudo pelo que o homem se afeiçoa, tudo que o homem teme, tem algo de humano – e tudo que é humano deve ser abraçado sem reservas (até mesmo o amor carnal e a experiência dos sentidos, que a igreja procurava sem trégua desautorizar).
Tudo na biografia real e inventada de Francesco – o ex-soldado, o ex-playboy, o trovador, o homem que se despiu à nudez completa diante de pobres e ricos, o santo descalço, o amante dos pássaros e da comida e da poesia e das mulheres – são expressões da oração #todoserhumanomerepresenta.
Uma história que não cessa de me desarmar é a de Irmão Angelo, jovem de origem nobre que tornou-se discípulo de Francesco e a quem o santo designou guardião de Monte Casale. Certa ocasião Angelo põe para correr três ladrões, muito conhecidos naquela região, que vão até o seu eremitério pedir algo para comer:
– O quê! Ladrões, malfeitores, assassinos! Vocês não têm vergonha de roubar os bens dos outros, e querem agora devorar o sustento dos servos de Deus? Vocês não são dignos de viver; não têm respeito nem pelos homens nem por Deus, seu criador. Fora daqui, e que eu nunca mais os veja novamente!
Quando chega com pão e vinho e fica sabendo do que aconteceu, Francesco censura gravemente o discípulo por não estar imbuído do espírito que fala da afinidade entre os homens. Ele não havia entendido que o evangelho é entender que todo ser humano nos representa, antes de tudo aqueles que o mundo encontra motivo de rejeitar?
– Eu lhe ordeno pela sua obediência – diz o santo, – que você pegue este pão e este vinho e vá procurar esses ladrões de alto a baixo até encontrá-los, e ofereça esse alimento como que de minha parte, e ajoelhe-se diante deles e peça humildemente o seu perdão, e peça-lhes em meu nome que deixem de fazer o mal e temam a Deus.
A disciplina da inclusão – ninguém pode ser rejeitado, ninguém pode ser excluído – é parte essencial do movimento franciscano, mas a gentileza universal de Francesco teve predecessores. A confissão cristã da afinidade essencial entre os homens já estava encapsulada no direito de santuário, regulamentado no Primeiro Concílio de Orleans em 511, que garantia proteção a qualquer um que buscasse refúgio numa igreja ou outro edifício eclesiástico. Essa proteção era estendida não apenas a quem fosse acusado de adultério, roubo e assassinato, mas para quem fosse efetivamente culpado desses crimes.
Cada uma a seu modo, as ordens monásticas eram proponentes desse mesmo espírito. A pobreza voluntária abraçada por Francesco era uma ideia cristã antiga, presente em forma mais do que embrionária no próprio Novo Testamento. Um dos motivos que levavam os monges a retirar-se do mundo era para denunciar os mecanismos de exclusão que operam no mundo, e erguem barreiras artificiais entre uma pessoa e outra. A vida monástica é um exercício em contracultura, um testemunho disciplinado de que as diferenças entre as pessoas pode ser demolidas neste mundo.
As ordens monásticas, por sua vez, serviram para temperar o espírito marcial das ordens militares religiosas, gerando o ideal do cavaleiro medieval: o homem corajoso e leal, generoso e cortês, protetor das mulheres e dos fracos, defensor dos injustiçados contra os opressores.
A galanteria do cavaleiro/cavalheiro influenciou muito claramente o próprio Francesco, que tratou apenas de desarmá-lo, descalçá-lo e ensiná-lo a cantar, tornando obviamente mais perigoso.
Em todas essas manifestações da cultura, o que havia de generoso, de inclusivo e de não conformista havia sido inspirado pelo Novo Testamento. A Idade Média não desconheceu a desigualdade, a guerra e a opressão exercidas em nome de Deus, mas o germe evangelical da afinidade entre os homens permanecia vivo em inúmeras vertentes das tradições populares.
Por exemplo, no Carnaval, em que o mundo virado de cabeça para baixo (o mundo da revolução) revelava a este mundo como o mundo igualitário deveria ser.
Por exemplo, na Divina Comédia de Dante, que não ignora as gradações e nuances dos exercícios da humanidade, e nos faz encontrar no inferno gente sábia e tolerante e no inferno amores da mais implacável ternura.
Esse veio dourado de amor ao que é humano correu livremente até Shakespeare (1564-1616), o maior campeão literário da confissão #todoserhumanomerepresenta. Ninguém mostrou-se mais apaixonado do que William Shakespeare pelas manifestações individuais e tantas vezes contraditórias do consórcio da humanidade. Shakespeare demonstra tanta empatia pela postura dos outros que cinco séculos de erudição foram incapazes de determinar ao certo qual era a sua. Ele aprendeu com Deus a derramar o seu sol sobre justos e injustos, e criou uma obra que representa todos os homens sem chegar a condenar ou absolver por completo nem sequer um.
O teatro é uma espécie de monasticismo às avessas, um disciplinado vestir de todos os destinos humanos em vez de um disciplinado despir-se deles – porém o resultado dos dois é semelhante, e ninguém o havia feito como Shakespeare: demonstrar a medula comum da fortuna de gente que se crê muito diferente entre si.
HAMLET (pedindo a Polônio que providencie hospedagem para seus amigos, atores itinerantes que acabaram de chegar ao castelo). Faça com que fiquem todos bem instalados. Está ouvindo? Que sejam bem cuidados, pois são a crônica sumária e abstrata do tempo. É preferível ter um mau epitáfio depois de morto do que ser difamado por eles enquanto vivo.
POLÔNIO. Pode deixar, senhor, darei a eles o tratamento que merecem.
HAMLET. Que é isso, homem? Trate-os melhor, muito melhor. Se dermos a cada homem o que merece, quem escapará do açoite?
Os autores do movimento romântico, escrevendo duzentos anos depois de Shakespeare, amavam a humanidade e tinham graves reservas contra a igreja, mas com frequência falavam do cristianismo como que de um vaso imperfeito, portador secreto ou metáfora de um espírito de enorme potencial revolucionário, aquele do amor.
Esse modo de ver o mundo culminou com a obra de Victor Hugo (1802-1885), de Os miseráveis e O corcunda de Notre-Dame (e do meu favorito, o quase kafkiano Os trabalhadores do mar).
Tomado por excessivamente sentimental mesmo por gente do seu tempo, Victor Hugo não fazia questão de esconder o seu ativismo pela ideia da afinidade primordial entre os seres humanos. Seus protagonistas tendem a ser homens que o mundo encontra facilidade em rejeitar, mas que acabam demonstrando (algumas vezes apenas para o leitor) extraordinários valor, generosidade e coragem.
Victor Hugo sabia criticar a igreja (veja-se O corcunda de Notre-Dame), mas encontrava na herança do Novo Testamento um lastro legítimo para revolução do amor inclusivo e da confissão #todoserhumanomerepresenta.
“As falhas das mulheres, das crianças, dos fracos, dos indigentes e dos ignorantes”, diz o bispo Myriel em Os miseráveis, “são culpa dos maridos, dos pais, dos mestres, dos fortes, dos ricos e dos sábios”. Falando diretamente com o leitor, Victor Hugo acrescenta: “Percebe-se que o bispo tinha um modo peculiar e próprio de julgar as coisas: suspeito que o tenha herdado dos evangelhos”.
Essa associação fica patente na passagem mais exaltada de Os miseráveis, em que o bispo Myriel abre para o protagonista Jean Valjean a porta da redenção (a palavra quer dizer comprar de volta), usando como única ferramenta o amor – uma passagem que a seu modo ecoa o episódio de Francesco com Irmão Angelo, e que se não reproduzo aqui é porque cada leitor deve encontrar o seu próprio modo de ver-se sozinho com ela pela primeira vez.
Mais ou menos na mesma época escreveram Leon Tolstoi (1828-1910) e Fiodor Dostoiévski (1821-1881), e em suas obras fica ainda mais declarada a ligação entre o cristianismo e a ideia de que cada homem representa todos os homens: que ninguém é melhor do que ninguém e que toda diferença de tratamento e atribuição de mérito é injusta e arbitrária.
Tudo que Dostoiévski escreveu pode ser considerado em alguma medida tratamento desse conceito, mas ele vem declarado na teologia da culpa universal de Frei Zósima, personagem de Os irmãos Karamazov:
Quando um monge percebe que é não apenas pior do que todos os leigos, mas é culpado por todas as coisas e por todos diante de todos, por todos os pecados humanos, individuais e coletivos, só então o alvo de nossa comunhão pode ser alcançado. Pois entendam, meus caros, que cada um de nós é sem qualquer dúvida culpado por todos os homens e por todas as coisas do mundo – não apenas através de uma culpa comum, coletiva, mas cada um individualmente por todas as pessoas e por toda pessoa deste mundo. Essa consciência coroa o caminho do monge, bem como coroa o caminho de cada pessoa na terra.
Para Frei Zósima, nossa capacidade de amar todas as pessoas só é completa quando entendemos que somos responsáveis por todas as pessoas. Para conhecer o amor universal é preciso reconhecer a culpa universal: “o único caminho para a salvação é mostrar-se pronto a responder por todos os pecados humanos”.
No caso de Leon Tolstoi, a ideia da afinidade entre os homens transbordou da sua obra para a sua postura pessoal e política. Tolstoi entreviu nos evangelhos, em particular no Sermão do Monte, o chamado e a chave para um mundo terreno livre de desigualdade e de opressão. Pelo caminho inaugurado por Jesus, aquele da pobreza voluntária, da não-violência e da resistência pacífica, se entra num reino de pura responsabilidade e de pura gentileza, sem propriedade privada, sem leis, sem governo central, sem policiais, sem exército. O reino onde todos se sentem responsáveis por todos é o reino da revolução, e portanto do amor.
O custo de vida na margem esquerda
Ao longo de dois milênios, portanto, duas grande vertentes da cultura acreditaram representar na terra a herança cristã. A primeira é formal e institucional, está sempre pronta a excluir e condenar e faz questão de manter-se no centro das atenções. A segunda é informal e subversiva, está sempre pronta a simpatizar e incluir, e entende que Jesus só se sente à vontade nas margens. A primeira é a Inquisição, a segunda São Francisco. A primeira acredita que a desigualdade social é inevitável, a segunda acredita que não. A primeira está perto do poder, a segunda está perto do povo. A primeira navega a política e a elite econômica, a segunda floresce na arte e na tradição popular. A primeira diz #talclassedepessoanãomerepresenta, a segunda diz #todoserhumanomerepresenta. A primeira tende para a direita, a segunda tende para a esquerda.
Se Dostoiévski e Upton Sinclair estão certos, não há melhor jeito de dizer essas coisas do que voltar aos evangelhos, e entender que a igreja caiu nas tentações a que Jesus resistiu no deserto. A igreja formal alinhou-se às estruturas de poder, apropriando-se de suas prioridades e métodos; deixou de ouvir a voz do povo comum e de ser visto na companhia de marginais.
O episódio das tentações está ali para indicar que é mais fácil escolher o poder e a exclusão (que dizem respeito a Satanás) do que a misericórdia e a gentileza (que dizem respeito àquele que Jesus chama de pai). Está aí a História que não me deixa mentir: em todas as épocas, os cristãos prontos a promover exclusão em nome da santidade se mostraram também prontos a aprovar o uso da força; em todos os casos (na hostilidade contra judeus, negros, bruxas, mulheres, hereges, terroristas e religiões competidoras) ficou demonstrado que estavam muito distantes do espírito de Jesus e dos evangelhos, mesmo (e especialmente) quando alegavam para a sua postura a divina credencial. Mas aparentemente não aprendem nem com os seus erros nem com os acertos do seu mestre, e continuam a encontrar novas categorias de pessoas para demonizar e excluir.
Dito de outro modo, para entender qual manifestação cristã está mais perto da herança de Jesus basta ver qual está disposta a pagar o preço de abraçar em vez de condenar, de amar em vez de odiar. O regime da misericórdia requer mais recursos do que o regime da justiça estrita. O próprio Jesus via o exercício do amor como problema econômico, e o compara a uma obra que cada um precisa determinar se tem recursos para pagar. “O amor é mais severo do que a justiça”, explicava Adolf Harnack. “A justiça admite exceções, o amor não admite exceção alguma”.
O sentimento de afinidade para com o próximo é para os fortes.
Entendido isso, a hostilidade dos cristãos contra a esquerda política ganha uma dimensão fortemente paradoxal, porque a esquerda é a soma de movimentos seculares que procuram modos de fazer o que Jesus convidou a igreja a fazer e a igreja nunca fez 2.
Há vários movimentos políticos com viés de esquerda, alguns deles com ênfases e métodos muito diversos, mas todos têm em comum a convicção de que as diferenças entre as pessoas e classes sociais não são naturais nem inevitáveis. Cada manifestação da esquerda busca articular a seu modo, despida de qualquer requerimento religioso, a confissão cristã #todoserhumanomerepresenta.
Na prática, é de esquerda todo movimento sociopolítico que trabalha para atenuar ou eliminar os efeitos desumanizantes e desfigurantes do capitalismo liberal. O capitalismo é uma máquina concebida para acentuar as diferenças entre as pessoas e tornar todos algozes de todos; todo simpatizante do Jesus dos evangelhos deveria ser capaz de entender o que ele teria a dizer a respeito de um sistema dessa natureza.
A verdade é que a igreja formal procurou sempre apagar a influência de movimentos cristãos que tomava por excessivamente gentis, inclusivos e tolerantes. Esse talvez fosse um paradoxo menor do que o presente, em que a igreja procura apagar a influência de movimentos seculares que toma por excessivamente gentis, inclusivos e tolerantes.
Para entender isso, basta recorrer ao testemunho da linha do tempo do Facebook mais próxima de você. Ela vai demonstrar que um cristão de direita se sente facilmente inclinado, com irmão Angelo, a dizer sobre determinadas classes de pessoas:
Ladrões, malfeitores, assassinos! Vocês não têm vergonha de roubar os bens dos outros, e querem agora devorar o sustento dos servos de Deus? Vocês não são dignos de viver; não têm respeito nem pelos homens nem por Deus, seu criador. Fora daqui, e que eu nunca mais os veja novamente!
Em contrapartida, o que um socialista secular teria dizer a um cristão de direita é melhor representado pela postura inclusiva e distributiva de São Francisco:
Eu lhe ordeno pela sua obediência que você pegue este pão e este vinho e vá procurar esses ladrões de alto a baixo até encontrá-los, e ofereça esse alimento como que de minha parte, e ajoelhe-se diante deles e peça humildemente o seu perdão.
Quando se posiciona contra as posturas e medidas da esquerda, o cristianismo conservador está procurando apagar uma luz que já lhe pertenceu, e que nunca procurou manter acesa. Veio para os seus, e os seus não o receberam. Pelo amor de Deus, deixem que brilhe, mesmo que entre vocês não tenha encontrado lugar.

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